Entrevista a Ana Luísa Amaral

Ana Luísa Amaral, poeta e professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é uma das presenças habituais nas Correntes d'Escritas, cujo prémio literário, de resto, já venceu, em 2007, pelo seu livro «A Génese do Amor». Este ano, no dia 24 do corrente, às 17h00, participará como oradora na primeira mesa de debate, subordinada ao tema «Escrevo para desiludir com mérito». A seu lado estarão Eduardo Pitta, Fernando J. B. Martinho, Francisco Moita Flores, Gilda Nunes Barata e Zuenir Ventura, moderados por Catherine Dumas. Nesse mesmo dia, às 22h00, lançará o seu novo livro, «Inversos - Poesia - 1990-2010», com o selo da Dom Quixote.

A que tipo de lógica obedece a sua escrita, é um projecto racionalizado ou antes o resultado de uma intimação?
Quando estou a escrever, não tenho um projecto de poema. Há, naturalmente, a (sempre dolorosa) escolha da palavra, mas, muitas vezes, e em muitos momentos, é a palavra que controla, não eu. Diria que o processo é recíproco: organizar palavras em equilíbrio precário. A parte da racionalização vem depois, quando o poema está quase pronto, e o revejo. E, mesmo aí, não raramente há iluminações que surgem – ou a intimação, sim.


É professora na Faculdade de Letras do Porto. Se um aluno lhe perguntasse o que é a poesia, o que lhe respondia?
Respondia-lhe o que já tenho respondido, ou seja, citava-lhe Emily Dickinson (uma grande poeta), ou Cesare Pavese (outro grande poeta). A primeira diz que a poesia e o amor “vêm coevos”; e acrescenta: “Ambos, nenhum provamos. / Um qualquer experimentamos e morremos - / Ninguém vê Deus e vive –“. Cesare Pavese, por seu lado, diz que a poesia começa quando “um idiota olha para o mar e diz ‘parece azeite’”. Não sei de melhores definições de poesia.

Qual a matéria-prima de um poeta? A realidade ou o coração?
Ambas, se entendermos ‘coração’ metaforicamente, bem entendido. E eu acrescentaria “a linguagem mesma – e a imaginação”.

Em 2005 publicou a sua «Poesia Reunida 1990-2005». Porque sente um poeta a determinada altura essa necessidade de condensar a sua obra, mesmo que a saiba necessariamente incompleta?
Achei que já tinha muitos livros, estando alguns deles completamente esgotados, e que, se quisesse algum dia fazer uma antologia, ela ficaria incomportável, em termos de extensão. Como a (infelizmente extinta) Quási já me vinha a propor essa edição há algum tempo, decidi-me a fazê-lo. Mas vai sair outra ‘poesia reunida’ ainda este mês de Fevereiro, que se chama Inversos, Poesia 1990-2010, porque essa de que fala esgotou. Inversos integra os dois últimos livros e ainda poemas inéditos.

O que sente ao entrar numa livraria e ver a poesia confinada a poucas estantes num local esconso do espaço em volta?
Não sinto nada de especial, confesso. Nem ando a ver se os meus livros estão ou não nas livrarias. Tenho é pena que à poesia em geral seja dado sempre um lugar secundário…

Há uns anos, poucos, Amadeu Baptista confessava que se não ganhasse os prémios literários que ia ganhando, morria de fome e miséria… Que comentário isto lhe merece acontecendo com os poetas de um país que se diz de poetas?
É incrível que não haja programas governamentais, como existem em países como a Irlanda, ou a Holanda, em que os escritores podem ter bolsas, sob condição de publicarem livros. Já Sophia dizia de Camões “Irás ao paço, irás pedir que a tença / seja paga na data combinada / Este país te mata lentamente”. Este país maltrata a cultura, sempre a maltratou, e acima dela põe interesses economicistas. Aliás, estamos a assistir a um período terrível, em que aquilo que interessa são os números e em que o indivíduo não passa de uma peça de engrenagem, dispensável, quando já não produz o que é imposto por um sistema desumano e desumanizado. E em que os pobres, os sem abrigo, os desempregados são cada vez mais – e isto é tão mais escandaloso num país onde não vemos um único dos indiciados em crimes de corrupção ser preso! Pelo contrário, até são reintegrados. Exprimo esta opinião, porque entendo que o poético e o político não são universos separáveis.
Não quero com isto dizer que entenda que a escrita é uma “profissão” – não o é, para mim. Eu sou “amadora” e quero continuar a sê-lo, no sentido em que ninguém me diz o que devo escrever, nem quando (o que não acontece enquanto professora universitária, a minha profissão, onde tenho que cumprir horários, deveres, etc.).
Seja como for, esses programas de apoio a quem escreve deviam existir.

Que lugar tem a poesia num mundo dos livros cada vez mais apostado no desempenho comercial?
A poesia, como a arte, é da zona do supérfluo, do “radicalmente inútil”, como diz Maria Irene Ramalho. E, por isso mesmo, é ela absolutamente necessária. Eu acho que a poesia continuará a existir enquanto houver seres humanos, porque se inscreve nesse espaço de desejo da totalidade – e, sendo possibilidade, ela contrariará sempre a lógica da economia.

E que função reconhece à poesia? Há nela, por exemplo, espaço para a subversão?
Sim, claro. A poesia, para mim, é por inerência transgressiva (embora nem sempre subversiva, são processos diferentes, a subversão e a transgressão) porque é um desvio à linguagem enquanto somente comunicação. As palavras são as mesmas, é a sua organização que difere, e dessas organizações surgem as imagens, as metáforas. A ter alguma função, a poesia servirá para preservar memórias – o que nos faz humanos. Neste sentido, para nos lembrar justamente que somos humanos e vivemos todos num espaço que cumpre preservar.
Mesmo se confessional, mesmo se atida a aspectos do quotidiano, a sua poesia estabelece pontes constantes com textos do passado. A poesia é um solilóquio ou um diálogo? E até que ponto é a poesia um reactualizar do já dito?
É as quatro coisas: solilóquio e diálogo; novidade e reactualização do já dito. O poema existe sempre a sós consigo, tal como quem o escreve está sozinho perante si mesmo; ao mesmo tempo, ele existe também em relação (com os outros, leitores, ainda que ideais, e com a tradição). Adicionalmente, e porque existe em relação, a poesia aspira a um trabalho novo com a palavra: embora sabendo quem a escreve que, no essencial, as coisas já foram ditas, o que se deseja é poder dizê-las de outras formas. É na língua, trabalhada e imaginada, que as linhas de fuga se criam.

Para além da nova reunião da sua poesia, que acima referiu, tem algum outro livro para sair em breve?
Tenho um que acabou de sair, pela Civilização: a reedição (com um CD, de que constam as canções e a peça que a Assédio fez no Teatro do Campo Alegre) de A História da Aranha Leopoldina.

Cortesia de PNETLiteratura

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