Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
m Beijo
Um beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
Fisionomia
Não é mentira
é outra
a dor que doi
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói
Dias Não Menos Dias
Chora-se com a facilidade das nascentes
Nasce-se sem querer, de um jato, como uma dádiva
(às primeiras virações vi corações se entrefugindo todos
ninguém soubera antes o que havia de ser não bater
as pálpebras em monocorde
e a tarde
pendurada no raminho de um
fogáceo arborescente
deixava-se ir
muda feita uma coisa ultima
Flores do Mais
devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
os restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.
Fagulha
Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
PEQUENA BIOGRAFIA
Ana Cristina César, nasceu em 1952, no Rio de Janeiro. Em 1968, fez as suas primeiras viagens pelo mundo e viveu, durante um ano, em Londres. Quando voltou deu aulas, traduziu, fez letras e escreveu para revistas e jornais alternativos. Em 1976, integrou a célebre antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque. Fez pesquisas sobre literatura e cinema. Concluíu o mestrado em comunicação e lançou os seus primeiros livros em edições independentes: Cenas de Abril e Correspondência Completa. Dez anos depois, voltou a Inglaterra. Em 1980, recebeu o título de Masters of Arts em Theory and Practice of Literary Translation pela Universidade de Essex. Durante a sua estadia em Inglaterra escreveu muitas cartas e editou Luvas de Pelica. Após regressar ao Brasil, trabalhou em jornalismo e televisão. Viu o melhor da sua obra publicada no livro A Teus Pés, pela editora Brasiliense (1982). Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983. Foram publicados três obras póstumas: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993). Em Portugal, em Novembro de 2005, as edições quasi, publicaram Um Beijo que Tivesse um Blue - uma antologia seleccionada e prefaciada por Joana Matos Frias.
Cortesia de Um Buraco na Sombra