POEMAS
Afterglow
É sempre comovente o pôr do Sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.
Ausência
Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornam vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.
Despedida
Hão-de erguer-se entre o meu amor e eu
trezentas noites quais trezentos muros
e o mar será magia entre nós dois.
Apenas haverá recordações.
Oh tardes merecidas pela pena,
noites esperançadas ao olhar-te,
campos do meu caminho, firmamento
que vejo e vou perdendo...
Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes.
A Prova
Do outro lado desta porta um homem
ignora a sua corrupção. À noite
elevará em vão alguma prece
ao seu curioso deus, que é três, dois, um,
e julgará que é imortal. Agora
ele ouve a profecia da sua morte
e sabe que é um animal sentado.
És esse homem, irmão. Agradeçamos
os vermes e o esquecimento.
Hino
Esta manhã
há no ar a incrível fragrância
das rosas do Paraíso.
Nas margens do Eufrates
Adão descobre a frescura da água.
Uma chuva de ouro cai do céu;
é o amor de Zeus.
Salta do mar um peixe
e um homem de Arigento lembrará
ter sido esse peixe.
Na gruta cujo nome será Altamira
dedos sem rosto traçam a curva
de um lombo de bisonte.
A lenta mão de Virgílio acarinha
a seda trazida
do reino do Imperador Amarelo
por naus e caravanas.
O primeiro rouxinol canta na Hungria.
Jesus vê na moeda o perfil de César.
Pitágoras revela aos seus gregos
que a forma do tempo é a do círculo.
Numa ilha do Oceano
os lebréus de prata perseguem os veados de ouro.
Numa bigorna forjam a espada
que será fiel a Sigurd.
Whitman canta em Manhattan.
Homero nasce em sete cidades.
Uma donzela acaba de caçar
o unicórnio branco.
Todo o passado volta, é uma onda,
e essas antigas coisas recorrem
porque uma mulher te beijou.
Nostalgia do presente
Naquele preciso momento o homem disse:
“O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruo.”
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.
Um sonho
Num deserto lugar do irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.
Inferno, V, 129
Deixam cair o livro, porque sabem
que são personagens do livro.
(Sê-lo-ão de outro, o máximo,
mas isso não lhes interessa.)
Agora são Paolo e Francesca,
não dois amigos que partilham
o sabor de uma história.
Olham um para o outro com incrédula maravilha,
as mãos não se tocam.
Descobriram o único tesouro;
encontraram o outro.
Não atraiçoam Malatesta,
porque a traição exige um terceiro
e só existem eles no mundo inteiro.
São Paolo e Francesca
e também a rainha e o seu amante
e todos os amantes que existiram
desde Adão e a sua Eva
no prado do Paraíso.
Um livro, um sonho revela-lhes
que são formas de um sonho que foi sonhado
em terras de Bretanha.
Outro livro fará com que os homens,
sonhos também, os sonhem.
Os justos
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.
PEQUENA BIOGRAFIA
Jorge Luis Borges (1899-1986) Poeta, contista e ensaísta argentino nasceu em Buenos Aires e morreu em Genebra. A avó era de ascendência inglesa e Borges foi Bilingue desde a infância. Borges passou uma temporada com os pais na Europa antes de 1914. Surpreendida pela guerra, a família passou o período de 1914 -18 na Suíça. Viveu em Espanha entre 1919 e 1921 e dois anos depois regressou à Argentina. Borges começou por publicar poesia ( Fervor de Buenos Aires, 1923) e dedicou-se a escrever contos nos anos seguintes sobre temas ditos argentinos. Na revista Sur, fundada por Victoria Ocampo, publicará recensões, ensaios, poemas e contos. Conhece Adolfo Bioy Casares com quem escreverá vários livros e desenvolverá diversas actividades literárias. Durante os anos 30 foi perdendo a visão, até ficar cego. Trabalhou a partir de 1937 na Biblioteca Municipal Miguel Cané, mas a ascensão de Perón ao poder obrigou-o a abandonar. Será nomeado director da Biblioteca Nacional em 1955, depois da queda de Péron. Em 1944 surge Ficciones, que reune os contos de O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941) e outros que coligiu sob o título de Artificios. Em 1949 publica O Aleph, outra colecção de contos. Nos anos sessenta viaja pela Europa, fazendo conferências pela Escócia, Inglaterra, França, Suíça e Espanha. Em 1967 casa-se com Elsa Millán que o acompanha aos Estados Unidos. Durante os anos setenta publica poesia (O ouro dos tigres, A rosa profunda, História da noite, entre outros volumes) e vários livros em colaboração. Viaja muito, acompanhado por Maria Kodama, com quem casará pouco antes de morrer. Em 1985 surge o seu último livro de poemas Os Conjurados.
Cortesia de Um Buraco na Sombra
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