Mahmud Darwich, poeta, acima de tudo, mas também prosador, ensaísta, jornalista, político, Darwich é uma presença indelével na sociedade palestina da segunda metade do século XX. Resistente contra a ocupação israelita, ergueu-se sempre em defesa de uma Palestina independente. Ele foi a voz, e a consciência, do seu povo, e ultrapassando as fronteiras da geografia, tornou-se também um ícone de todo o mundo árabe, que hoje lhe conhece os versos e os recita de cor.
Personagem singular do Médio Oriente contemporâneo, Mahmud Darwich nasceu em Al-Birwa, uma aldeia da Galileia, perto de São João d’Acre, então território sob mandato britânico, em 13 de Março de 1941, sendo o segundo dos oito filhos de uma família de proprietários rurais. Após a criação do Estado de Israel em 1948, a sua aldeia foi invadida e a família fugiu para o Líbano (primeiro Jezzin e depois Damur), onde permaneceu um ano. Quando regressaram clandestinamente a Israel descobriram que a aldeia fora completamente arrasada e substituída por um colonato judaico. Então, a família instalou-se em Deir al-Assad, onde Mahmud frequentou a escola primária. Concluiu depois o liceu em Kafr Yassif e acabou por partir para Haifa. O seu primeiro livro de poesia foi publicado quando tinha apenas 19 anos: Asâfîr bilâ ajniha (“Pássaros sem asas”, 1960). Em 1964, começou a ser reconhecido nacional e mesmo internacionalmente, como uma voz da resistência palestina, com o livro Awrâq al-zaytûn (“Folhas de oliveira”), de que ouviremos aqui o poema “Bilhete de identidade”.
Continuou a publicar poemas e artigos em jornais e revistas, como Al-Ittihad (A União) e Al-Jadid (O Novo), de que se tornou mais tarde redactor. Em 1961, aderiu secretamente ao Partido Comunista de Israel e começou a trabalhar como redactor adjunto do jornal Al-Fajr (A Aurora).
Entre 1961 e 1967 é preso diversas vezes pelos seus escritos e actividades políticas. Durante este período, Darwich sonha com a revolução, canta a pátria, defende a identidade palestina e proclama a solidariedade internacionalista.
Deixa Israel em 1970 para estudar na União Soviética, tendo frequentado durante um ano a Universidade de Moscovo. Em 1971 vai para o Cairo, onde trabalha no diário Al-Ahram e em 1973 para Beirute, onde dirige a revista mensal Shu’un Filistiniyya (Assuntos Palestinos). Nesse ano, adere à Organização de Libertação da Palestina (OLP), tendo sido, por isso, proibido de voltar a entrar em Israel e, em 1981, funda o jornal literário Al-Karmel.
Com o bombardeamento de Beirute pelos israelitas em 1982, Darwich exila-se no Cairo, depois em Tunis e finalmente em Paris. Em 1987, é eleito para o comité executivo da OLP, sendo também presidente da União dos Escritores Palestinos.
Na sequência dos Acordos de Oslo de 1993, e como forma de protesto contra a atitude da OLP, que considera demasiado conciliatória nas negociações, abandona a Organização.
Em 1995, obtém um visto do governo israelita para voltar à Palestina a fim de visitar a mãe e em 1996 assiste em Israel aos funerais do grande escritor palestino Imil Habibi, que permaneceu em Haifa até ao fim da vida. Recebe então autorização para viver em Ramallah, onde se encontra instalado o governo de Yasser Arafat. A cidade é violentamente atacada e cercada em 2002 pelas tropas de Ariel Sharon. Darwich instala-se depois em Amman, na Jordânia.
Em 15 de Julho de 2007, visita Haifa para participar num sessão em sua honra organizada no auditório do Monte Carmelo pela revista Masharaf e pelo partido israelita Hadash (Frente Democrática para a Paz e a Igualdade). Aí discursa, lê poesia para milhares de pessoas e critica a violência entre o Hamas e o Fatah.
Morre aos 67 anos, nos Estados Unidos, no Hospital Memorial Hermann de Houston, em 9 de Agosto de 2008, na sequência de complicações decorrentes de uma intervenção cirúrgica ao coração, ao qual fora já operado duas vezes, em 1984 e 1998. O féretro foi recebido com honras especiais em Amman e realizaram-se funerais nacionais em Ramallah, onde os restos mortais foram sepultados junto ao Palácio da Cultura. Nesse mesmo sítio, em Julho passado, Darwich havia feito a sua última intervenção pública, lendo poemas para uma audiência de 2.000 pessoas. Como disse a deputada palestina Hanan Ashrawi, Darwich “tinha uma visão muito clara não apenas de quem somos mas de quem devíamos ser”.
O poeta casou e divorciou-se duas vezes e não teve filhos. Recebeu várias distinções, nomeadamente o Prémio Lotus (da União dos Escritores Afro-Asiáticos, em 1969), o Prémio Lenine da Paz (da União Soviética, em 1983), a Medalha da Ordem das Artes e Letras (da França, em 1993), o Prémio para a Liberdade Cultural (da Fundação Lannan, em 2002), o Prémio Príncipe Claus (dos Países Baixos, em 2004)), o Prémio Coroa de Ouro (da Macedónia, em 2007) e ainda o Wissam (medalha) de Mérito Intelectual (de Marrocos).
Estando os pais ocupados com o trabalho da terra, Darwich foi educado especialmente pelo avô, que lhe incutiu o gosto pela leitura. Depois, o irmão mais velho encorajou-o a escrever poesia. A expulsão da sua aldeia natal e a permanência numa Palestina ocupada por Israel, levaram-no, desde muito cedo, a reflectir sobre a condição de exilado na sua própria pátria. Através dos seus livros, e também da sua militância política, Darwich forjou uma consciência nacional palestina, que se manifesta especialmente depois da Guerra dos Seis Dias, de 1967. É quando os seus poemas passam a ser ensinados nas escolas através de todo o mundo árabe.
Darwich escreveu mais de 30 livros de poesia e oito de prosa.
A sua poesia é especialmente influenciada pelos iraquianos Abd-al-Wahab al-Bayati e Badr Shakir al-Sayyab. E também, ainda que menos directamente, pelos sírios Adonis e Nizar Qabbani. Os poetas ocidentais chegam-lhe através do hebraico, língua que também domina.
O percurso poético de Mahmud Darwich pode dividir-se em oito períodos:
1) A fase da juventude, que começa em 1960, com “Os pássaros sem asas”, muito marcada pela influência árabe clássica e a poesia romântica moderna;
2) A fase dita revolucionária, incarnada na colectânea “Folhas de oliveira”, de 1964, em que Darwich passa das preocupações subjectivas às grandes interrogações colectivas e aos sonhos de revolução;
3) A fase revolucionária e patriótica, marcada pelas colectâneas Ashiq min Filistîn (Um amante da Palestina), de 1966, Akhir al-Layl (O fim da noite), de 1967, Al-Asafîr tamûtu fî’l Jalîl (Os pássaros morrem na Galileia), de 1969 e Habîbatî Tanhadu min Nawmihâ (A minha amada desperta do seu sono), de 1970. Nesta época, a poesia de Darwich faz parte integrante do que então se chamou a Poesia da Resistência e que agrupava outros poetas palestinos como Tawfiq Zayyad e Samih al-Qasim. Mas já Darwich se distinguia destes pela abundância da sua criação, por um mais vasto horizonte humano, pela utilização dos mitos e dos símbolos do Médio Oriente e da Grécia Antiga, pela dimensão épica atribuída ao quotidiano, pelo lugar de eleição ocupado pela mulher símbolo da terra, pela aptidão em misturar o romantismo lírico e o apelo revolucionário.
4) A fase em que procede à elaboração de uma estética, que começa com a sua chegada ao Cairo e depois a Beirute. Então, desejoso de provar que tem um projecto, que pertence à modernidade e que por isso não podem confiná-lo a um poeta da resistência, Darwich entra em conflito com os seus leitores que reclamam que ele seja acima de tudo, senão exclusivamente, um poeta de combate, ao que ele lhes responde que um poeta de combate é, antes do mais, um poeta. Pertence a esta fase Uhibbuki aw lâ Uhibbuki (Amo-te ou não te amo), de 1972, que marca uma mutação no seu estilo e uma inovação poética, tendência acentuada com Muhâwala raqm Sab’a (Tentativa número 7), de 1973 e especialmente com Tilka Sûratuhâ wa hazâ Intihâru’l ‘Ashiq (Tal é a sua imagem e eis o suicídio do amante), de 1975. Optando pelos poemas longos, misturando contemplação lírica e narração de epopeia, Darwich afirma-se como poeta inovador e pode regressar aos temas patrióticos, ainda que transformados, de que é exemplo A’râss (Bodas), de 1977.
5) A fase dita épica que se inicia após a invasão israelita do Líbano, em 1982 e a expulsão dos palestinos da capital libanesa. Darwich, que acompanha os seus compatriotas no exílio, publica em 1983 o longo poema Madîh al-Zill al-‘Alî (Elogio da sombra alta) que qualifica de “poema-documentário”, em que traça um grande fresco da invasão, da resistência da capital libanesa e do massacre dos refugiados palestinos em Sabra e Chatila. São ainda deste período Hisâr li-Madâ’ih al-Bahr (Cerco dos louvores do mar) e Qasîdat Bayrût (Poema de Beirute), ambos de 1984.
6) A fase lírica, coincide com a estada de Darwich em Paris, depois de uma curta permanência em Tunis. Aí publica Hiya Ughniya, Hiya Ughniya (É uma canção, é uma canção), em 1984 e Ward Aqall (Menos rosas), em 1986. Estas colectâneas retomam o projecto iniciado no Líbano e que foi interrompido pelo cerco israelita. Darwich surge agora mais habitado pelas questões interiores e pelas interrogações metafísicas. Este período distingue-se por uma especial investigação sobre as formas da composição musical e a sua transposição para a estrutura do poema.
7) A fase lírico-épica, em que Darwich regressa aos longos poemas, marcados por grandes experiências trágicas da humanidade, como as invasões mongóis, a guerra de Tróia, a perda da Andaluzia, o genocídio dos índios. Pertencem a esta fase Ara mã Urîd (Vejo o que quero), de 1990 e Ahada ‘Ashara Kawkabann (Onze astros sobre o epílogo andaluz), de 1992.
8) A fase dos temas independentes, que pode considerar-se iniciada em 1995, com Limâza Tarakta al-Hisâna Wahîdann? (Porque deixaste o cavalo só?), uma autobiografia duplicada pela “biografia” dos lugares e Sarîr al-Gharîba (O leito da estrangeira), de 1998, consagrado aos poemas de amor. Em 1999, com textos seus e de René Backmann, é editado o grande álbum de fotografias de Larry Towell Then Palestine. Em 2000, surge Jidariyya (Mural), um longo poema de que ouviremos aqui os primeiros versos, e em 2002 Hâlat hisâr (Estado de sítio), sobre o cerco de Ramallah, livro de poemas acompanhado de fotografias de Olivier Thébaud. O seu último livro é de 2005, Ka-zahr el-lawz aw ab’ad (Como flores de amendoeira ou mais longe).
Na prosa, podemos assinalar, entre outras obras, o livro sobre o cerco de Beirute de 1982, Dhakirah li-al-nisyan (Memória para o esquecimento) e a colectânea de entrevistas concedidas a vários jornalistas e publicada em francês, em 1997, com o título La Palestine comme métaphore.
O ministro da Educação de Israel, Yossi Sarid, propôs, em Março de 2000, que alguns poemas de Darwich fossem incluídos no curriculum do ensino liceal israelita; porém, os membros da ala direita do governo de Ehud Barak ameaçaram apresentar um voto de desconfiança e Barak declarou que Israel não estava preparado para a obra de Darwich. O poeta afirmou então: “Os israelitas não querem ensinar aos estudantes que há uma história de amor entre um poeta árabe e esta terra. Eu apenas desejava que me lessem para apreciar a minha poesia e não como um representante do inimigo”.
Mahmud Darwich está traduzido em mais de quarenta línguas e foi interpretado por vários cantores, como o libanês Marcel Khalifa, que musicou e cantou vários poemas seus, entre os quais “À minha mãe”, que ouviremos aqui.
No cinema, devem assinalar-se dois documentários: “Mahmoud Darwich, et la terre comme la langue”, realizado em 1997 para a televisão francesa por Simone Bitton e Elias Sanbar e “Écrivains des frontières”, realizado em 2004 por Samir Abdallah e José Reynes, e que mostra Darwich, cercado em Ramallah em 2002, a receber, na companhia de Leïla Shahid e Elias Sanbar, uma delegação do Parlamento Internacional dos Escritores, que incluía, entre outros, José Saramago, Juan Goytisolo e Breyten Breytenbach.
Darwich participou também no filme “Notre musique”, de Jean-Luc Godard, realizado em Sarajevo, em 2004, a propósito dos Encontros Europeus do Livro, e que foi seleccionado para o Festival de Cannes. Neste filme, respondendo às questões de uma jovem israelita, afirma: “Sabe porque nós, palestinos, somos célebres? Porque são vocês o inimigo. O interesse pela questão palestina emanou do interesse pela questão judaica... Nós tivemos o azar de ter por inimigo Israel, que tantos simpatizantes tem por esse mundo fora. E tivemos a sorte do nosso inimigo ser Israel, visto os judeus serem o centro do mundo. Vocês deram-nos a derrota e a fama, por o mundo se interessar por vocês e não por nós; não tenho ilusões quanto a isso”. E Darwich, homem extraordinariamente lúcido e de grande coragem, termina a entrevista, dizendo: “Um povo sem poesia é um povo vencido”.
Não permite o tempo que nos alonguemos sobre a figura excepcional de Mahmud Darwich, e é tanto o que fica por dizer, mas podemos concluir com uma citação que resume a sua obra, a sua luta, a luta de todos os palestinos: “Triunfámos sobre o plano para nos expulsarem da história”.
Adaptado de um texto do autor Júlio de Magalhães
Personagem singular do Médio Oriente contemporâneo, Mahmud Darwich nasceu em Al-Birwa, uma aldeia da Galileia, perto de São João d’Acre, então território sob mandato britânico, em 13 de Março de 1941, sendo o segundo dos oito filhos de uma família de proprietários rurais. Após a criação do Estado de Israel em 1948, a sua aldeia foi invadida e a família fugiu para o Líbano (primeiro Jezzin e depois Damur), onde permaneceu um ano. Quando regressaram clandestinamente a Israel descobriram que a aldeia fora completamente arrasada e substituída por um colonato judaico. Então, a família instalou-se em Deir al-Assad, onde Mahmud frequentou a escola primária. Concluiu depois o liceu em Kafr Yassif e acabou por partir para Haifa. O seu primeiro livro de poesia foi publicado quando tinha apenas 19 anos: Asâfîr bilâ ajniha (“Pássaros sem asas”, 1960). Em 1964, começou a ser reconhecido nacional e mesmo internacionalmente, como uma voz da resistência palestina, com o livro Awrâq al-zaytûn (“Folhas de oliveira”), de que ouviremos aqui o poema “Bilhete de identidade”.
Continuou a publicar poemas e artigos em jornais e revistas, como Al-Ittihad (A União) e Al-Jadid (O Novo), de que se tornou mais tarde redactor. Em 1961, aderiu secretamente ao Partido Comunista de Israel e começou a trabalhar como redactor adjunto do jornal Al-Fajr (A Aurora).
Entre 1961 e 1967 é preso diversas vezes pelos seus escritos e actividades políticas. Durante este período, Darwich sonha com a revolução, canta a pátria, defende a identidade palestina e proclama a solidariedade internacionalista.
Deixa Israel em 1970 para estudar na União Soviética, tendo frequentado durante um ano a Universidade de Moscovo. Em 1971 vai para o Cairo, onde trabalha no diário Al-Ahram e em 1973 para Beirute, onde dirige a revista mensal Shu’un Filistiniyya (Assuntos Palestinos). Nesse ano, adere à Organização de Libertação da Palestina (OLP), tendo sido, por isso, proibido de voltar a entrar em Israel e, em 1981, funda o jornal literário Al-Karmel.
Com o bombardeamento de Beirute pelos israelitas em 1982, Darwich exila-se no Cairo, depois em Tunis e finalmente em Paris. Em 1987, é eleito para o comité executivo da OLP, sendo também presidente da União dos Escritores Palestinos.
Na sequência dos Acordos de Oslo de 1993, e como forma de protesto contra a atitude da OLP, que considera demasiado conciliatória nas negociações, abandona a Organização.
Em 1995, obtém um visto do governo israelita para voltar à Palestina a fim de visitar a mãe e em 1996 assiste em Israel aos funerais do grande escritor palestino Imil Habibi, que permaneceu em Haifa até ao fim da vida. Recebe então autorização para viver em Ramallah, onde se encontra instalado o governo de Yasser Arafat. A cidade é violentamente atacada e cercada em 2002 pelas tropas de Ariel Sharon. Darwich instala-se depois em Amman, na Jordânia.
Em 15 de Julho de 2007, visita Haifa para participar num sessão em sua honra organizada no auditório do Monte Carmelo pela revista Masharaf e pelo partido israelita Hadash (Frente Democrática para a Paz e a Igualdade). Aí discursa, lê poesia para milhares de pessoas e critica a violência entre o Hamas e o Fatah.
Morre aos 67 anos, nos Estados Unidos, no Hospital Memorial Hermann de Houston, em 9 de Agosto de 2008, na sequência de complicações decorrentes de uma intervenção cirúrgica ao coração, ao qual fora já operado duas vezes, em 1984 e 1998. O féretro foi recebido com honras especiais em Amman e realizaram-se funerais nacionais em Ramallah, onde os restos mortais foram sepultados junto ao Palácio da Cultura. Nesse mesmo sítio, em Julho passado, Darwich havia feito a sua última intervenção pública, lendo poemas para uma audiência de 2.000 pessoas. Como disse a deputada palestina Hanan Ashrawi, Darwich “tinha uma visão muito clara não apenas de quem somos mas de quem devíamos ser”.
O poeta casou e divorciou-se duas vezes e não teve filhos. Recebeu várias distinções, nomeadamente o Prémio Lotus (da União dos Escritores Afro-Asiáticos, em 1969), o Prémio Lenine da Paz (da União Soviética, em 1983), a Medalha da Ordem das Artes e Letras (da França, em 1993), o Prémio para a Liberdade Cultural (da Fundação Lannan, em 2002), o Prémio Príncipe Claus (dos Países Baixos, em 2004)), o Prémio Coroa de Ouro (da Macedónia, em 2007) e ainda o Wissam (medalha) de Mérito Intelectual (de Marrocos).
Estando os pais ocupados com o trabalho da terra, Darwich foi educado especialmente pelo avô, que lhe incutiu o gosto pela leitura. Depois, o irmão mais velho encorajou-o a escrever poesia. A expulsão da sua aldeia natal e a permanência numa Palestina ocupada por Israel, levaram-no, desde muito cedo, a reflectir sobre a condição de exilado na sua própria pátria. Através dos seus livros, e também da sua militância política, Darwich forjou uma consciência nacional palestina, que se manifesta especialmente depois da Guerra dos Seis Dias, de 1967. É quando os seus poemas passam a ser ensinados nas escolas através de todo o mundo árabe.
Darwich escreveu mais de 30 livros de poesia e oito de prosa.
A sua poesia é especialmente influenciada pelos iraquianos Abd-al-Wahab al-Bayati e Badr Shakir al-Sayyab. E também, ainda que menos directamente, pelos sírios Adonis e Nizar Qabbani. Os poetas ocidentais chegam-lhe através do hebraico, língua que também domina.
O percurso poético de Mahmud Darwich pode dividir-se em oito períodos:
1) A fase da juventude, que começa em 1960, com “Os pássaros sem asas”, muito marcada pela influência árabe clássica e a poesia romântica moderna;
2) A fase dita revolucionária, incarnada na colectânea “Folhas de oliveira”, de 1964, em que Darwich passa das preocupações subjectivas às grandes interrogações colectivas e aos sonhos de revolução;
3) A fase revolucionária e patriótica, marcada pelas colectâneas Ashiq min Filistîn (Um amante da Palestina), de 1966, Akhir al-Layl (O fim da noite), de 1967, Al-Asafîr tamûtu fî’l Jalîl (Os pássaros morrem na Galileia), de 1969 e Habîbatî Tanhadu min Nawmihâ (A minha amada desperta do seu sono), de 1970. Nesta época, a poesia de Darwich faz parte integrante do que então se chamou a Poesia da Resistência e que agrupava outros poetas palestinos como Tawfiq Zayyad e Samih al-Qasim. Mas já Darwich se distinguia destes pela abundância da sua criação, por um mais vasto horizonte humano, pela utilização dos mitos e dos símbolos do Médio Oriente e da Grécia Antiga, pela dimensão épica atribuída ao quotidiano, pelo lugar de eleição ocupado pela mulher símbolo da terra, pela aptidão em misturar o romantismo lírico e o apelo revolucionário.
4) A fase em que procede à elaboração de uma estética, que começa com a sua chegada ao Cairo e depois a Beirute. Então, desejoso de provar que tem um projecto, que pertence à modernidade e que por isso não podem confiná-lo a um poeta da resistência, Darwich entra em conflito com os seus leitores que reclamam que ele seja acima de tudo, senão exclusivamente, um poeta de combate, ao que ele lhes responde que um poeta de combate é, antes do mais, um poeta. Pertence a esta fase Uhibbuki aw lâ Uhibbuki (Amo-te ou não te amo), de 1972, que marca uma mutação no seu estilo e uma inovação poética, tendência acentuada com Muhâwala raqm Sab’a (Tentativa número 7), de 1973 e especialmente com Tilka Sûratuhâ wa hazâ Intihâru’l ‘Ashiq (Tal é a sua imagem e eis o suicídio do amante), de 1975. Optando pelos poemas longos, misturando contemplação lírica e narração de epopeia, Darwich afirma-se como poeta inovador e pode regressar aos temas patrióticos, ainda que transformados, de que é exemplo A’râss (Bodas), de 1977.
5) A fase dita épica que se inicia após a invasão israelita do Líbano, em 1982 e a expulsão dos palestinos da capital libanesa. Darwich, que acompanha os seus compatriotas no exílio, publica em 1983 o longo poema Madîh al-Zill al-‘Alî (Elogio da sombra alta) que qualifica de “poema-documentário”, em que traça um grande fresco da invasão, da resistência da capital libanesa e do massacre dos refugiados palestinos em Sabra e Chatila. São ainda deste período Hisâr li-Madâ’ih al-Bahr (Cerco dos louvores do mar) e Qasîdat Bayrût (Poema de Beirute), ambos de 1984.
6) A fase lírica, coincide com a estada de Darwich em Paris, depois de uma curta permanência em Tunis. Aí publica Hiya Ughniya, Hiya Ughniya (É uma canção, é uma canção), em 1984 e Ward Aqall (Menos rosas), em 1986. Estas colectâneas retomam o projecto iniciado no Líbano e que foi interrompido pelo cerco israelita. Darwich surge agora mais habitado pelas questões interiores e pelas interrogações metafísicas. Este período distingue-se por uma especial investigação sobre as formas da composição musical e a sua transposição para a estrutura do poema.
7) A fase lírico-épica, em que Darwich regressa aos longos poemas, marcados por grandes experiências trágicas da humanidade, como as invasões mongóis, a guerra de Tróia, a perda da Andaluzia, o genocídio dos índios. Pertencem a esta fase Ara mã Urîd (Vejo o que quero), de 1990 e Ahada ‘Ashara Kawkabann (Onze astros sobre o epílogo andaluz), de 1992.
8) A fase dos temas independentes, que pode considerar-se iniciada em 1995, com Limâza Tarakta al-Hisâna Wahîdann? (Porque deixaste o cavalo só?), uma autobiografia duplicada pela “biografia” dos lugares e Sarîr al-Gharîba (O leito da estrangeira), de 1998, consagrado aos poemas de amor. Em 1999, com textos seus e de René Backmann, é editado o grande álbum de fotografias de Larry Towell Then Palestine. Em 2000, surge Jidariyya (Mural), um longo poema de que ouviremos aqui os primeiros versos, e em 2002 Hâlat hisâr (Estado de sítio), sobre o cerco de Ramallah, livro de poemas acompanhado de fotografias de Olivier Thébaud. O seu último livro é de 2005, Ka-zahr el-lawz aw ab’ad (Como flores de amendoeira ou mais longe).
Na prosa, podemos assinalar, entre outras obras, o livro sobre o cerco de Beirute de 1982, Dhakirah li-al-nisyan (Memória para o esquecimento) e a colectânea de entrevistas concedidas a vários jornalistas e publicada em francês, em 1997, com o título La Palestine comme métaphore.
O ministro da Educação de Israel, Yossi Sarid, propôs, em Março de 2000, que alguns poemas de Darwich fossem incluídos no curriculum do ensino liceal israelita; porém, os membros da ala direita do governo de Ehud Barak ameaçaram apresentar um voto de desconfiança e Barak declarou que Israel não estava preparado para a obra de Darwich. O poeta afirmou então: “Os israelitas não querem ensinar aos estudantes que há uma história de amor entre um poeta árabe e esta terra. Eu apenas desejava que me lessem para apreciar a minha poesia e não como um representante do inimigo”.
Mahmud Darwich está traduzido em mais de quarenta línguas e foi interpretado por vários cantores, como o libanês Marcel Khalifa, que musicou e cantou vários poemas seus, entre os quais “À minha mãe”, que ouviremos aqui.
No cinema, devem assinalar-se dois documentários: “Mahmoud Darwich, et la terre comme la langue”, realizado em 1997 para a televisão francesa por Simone Bitton e Elias Sanbar e “Écrivains des frontières”, realizado em 2004 por Samir Abdallah e José Reynes, e que mostra Darwich, cercado em Ramallah em 2002, a receber, na companhia de Leïla Shahid e Elias Sanbar, uma delegação do Parlamento Internacional dos Escritores, que incluía, entre outros, José Saramago, Juan Goytisolo e Breyten Breytenbach.
Darwich participou também no filme “Notre musique”, de Jean-Luc Godard, realizado em Sarajevo, em 2004, a propósito dos Encontros Europeus do Livro, e que foi seleccionado para o Festival de Cannes. Neste filme, respondendo às questões de uma jovem israelita, afirma: “Sabe porque nós, palestinos, somos célebres? Porque são vocês o inimigo. O interesse pela questão palestina emanou do interesse pela questão judaica... Nós tivemos o azar de ter por inimigo Israel, que tantos simpatizantes tem por esse mundo fora. E tivemos a sorte do nosso inimigo ser Israel, visto os judeus serem o centro do mundo. Vocês deram-nos a derrota e a fama, por o mundo se interessar por vocês e não por nós; não tenho ilusões quanto a isso”. E Darwich, homem extraordinariamente lúcido e de grande coragem, termina a entrevista, dizendo: “Um povo sem poesia é um povo vencido”.
Não permite o tempo que nos alonguemos sobre a figura excepcional de Mahmud Darwich, e é tanto o que fica por dizer, mas podemos concluir com uma citação que resume a sua obra, a sua luta, a luta de todos os palestinos: “Triunfámos sobre o plano para nos expulsarem da história”.
Adaptado de um texto do autor Júlio de Magalhães
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