“Que significa cativar?” perguntou o principezinho à raposa. “Significa criar laços, que é uma coisa de que toda a gente se esqueceu.” Amália Rodrigues faria este mês 90 anos. No dia 1 ou no dia 23 – como ela própria disse, ligaram tão pouca importância ao acontecimento que nem se deram ao trabalho de anotar a data exacta. Mas os laços que criou, a poesia da voz e na voz de Amália perduram, longos, no tempo e no espaço.
Natália Rumiantseva, bibliotecária em São Petersburgo, deixou-se cativar por essa poesia. Natália não se identifica com a música pop ou rock, diz. E, na sua busca por outras sonoridades, encontrou um dia um CD de Amália, e foi uma revelação. “Talvez para os Portugueses seja normal, nascem dentro desta cultura, mas eu descobri esta música há relativamente pouco tempo; quando a ouvi pela primeira vez pareceu-me tão próxima, e mesmo sem saber a língua senti que a compreendia. E, mais tarde, vi que estava certa.”
Em 2006 visitou Lisboa, “para ouvir o fado onde ele tinha nascido”. Sem saber que andava literalmente pelos caminhos de Amália, subiu uma vez a Rua de São Bento. “De repente oiço a voz de Amália, viro-me e vejo uma porta, era um fim de tarde de Agosto e a porta estava aberta, e vejo o retrato de Amália! Que encontro! Fado”, diz Natália, séria e simplesmente, no rosto a expressão de quem sente verdadeiramente o significado daquela palavra.
E conta, com emoção e gratidão, como foi recebida por Estrela Carvas, amiga e confidente de Amália, que hoje vela pela Casa-Museu. “Eu ainda não falava português, ela falava um pouco de inglês. Sensibilizou-me muito a maneira como me recebeu, tão simples e com tão grande amizade, e, com tão grande amor por Amália, me levou em visita guiada pela casa. Numa parede vi referências à passagem de Amália por vários cantos do mundo, mas nada da Rússia. Mas Estrela Carvas disse-me que ela cá tinha estado. Depois, encontrei o livro Amália – Uma biografia, de Vítor Pavão dos Santos, e, na lista das tournées, a informação de que Amália deu, em Maio de 1969, vários concertos na então União Soviética.
“E eu pensei – eu sou bibliotecária, agora regresso a São Petersburgo, pesquiso nos arquivos dos jornais e revistas da época, recolho informação e escrevo cá um destes artigos! Mas, imagine, no princípio não encontrei nada. Mas não desisti. E assim começou a minha investigação.” Entretanto, começou a estudar português, na Faculdade de Filologia da Universidade Estatal de São Petersburgo, para compreender melhor a cultura que sentia tão próxima. “Quanto mais conheço a arte de Amália, mais me impressionam a sua profundidade e beleza. Eu estudei muito a literatura clássica Russa, e, para mim, a arte de Amália está ao mesmo nível. Ela tem essa nobreza de alma que transparece na nossa grande literatura”.
Teve ainda a ideia de procurar pessoas que estiveram presentes naqueles concertos. “A própria Amália disse que Fado é lamento, pranto, e isto está-nos muito próximo. Há fados alegres e fados muitos tristes, sobre a solidão, o medo, mesmo o amor à Pátria. Agora, vivemos em tempo de paz” - Natália fica silenciosa um momento - “mas então, tínhamos passado por uma guerra horrível, quanta dor e sofrimento, em geral todo o século XX parece um pesadelo, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução terrível, a Guerra Civil, depois repressão, a Segunda Guerra Mundial, outra vez repressão – horror. E, para além disso, era impossível falar abertamente do próprio sofrimento, chorar abertamente. É um paradoxo da nossa vida.” E por isso se interroga - o que terão as pessoas sentido ao ouvir esta cantora? Como foi o seu encontro com o fado? “A língua era desconhecida, mas aquilo que ela cantava não era possível esconder. O fado fala do que é também o nosso destino, da história da nossa vida.”
Natália tem vindo a construir, com grande sensibilidade, um arquivo-testemunho da arte de Amália, com todo o material que tem encontrado ao longo da sua pesquisa: o programa dos espectáculos na URSS, referências em jornais e revistas da época, uma entrevista que fez a Helena Golubeva - uma das maiores especialistas em língua portuguesa na Rússia, que esteve presente num dos concertos há quarenta anos… Aos poucos, vai traduzindo poemas-fado e artigos sobre Amália em Russo, e partilhando esse material na internet. Um exemplo do requinte com que o faz: na página dedicada à tournée por Leninegrado, o pormenor vai ao ponto de incluir a descrição do estado do tempo nos dias dos concertos.
Natália gostava que na Casa-Museu de Amália aparecessem registos da passagem pela Rússia, e de traduzir, um dia, o livro Amália – Uma biografia em Russo. Mas, mais importante, diz, “é o caminho – fado é caminho”: e continuará a sua viagem de descoberta pela cultura portuguesa, velando para que os laços que Amália criou se tornem realidade para cada vez mais pessoas.
por A. L. Simões Gamboa
Natália Rumiantseva, bibliotecária em São Petersburgo, deixou-se cativar por essa poesia. Natália não se identifica com a música pop ou rock, diz. E, na sua busca por outras sonoridades, encontrou um dia um CD de Amália, e foi uma revelação. “Talvez para os Portugueses seja normal, nascem dentro desta cultura, mas eu descobri esta música há relativamente pouco tempo; quando a ouvi pela primeira vez pareceu-me tão próxima, e mesmo sem saber a língua senti que a compreendia. E, mais tarde, vi que estava certa.”
Em 2006 visitou Lisboa, “para ouvir o fado onde ele tinha nascido”. Sem saber que andava literalmente pelos caminhos de Amália, subiu uma vez a Rua de São Bento. “De repente oiço a voz de Amália, viro-me e vejo uma porta, era um fim de tarde de Agosto e a porta estava aberta, e vejo o retrato de Amália! Que encontro! Fado”, diz Natália, séria e simplesmente, no rosto a expressão de quem sente verdadeiramente o significado daquela palavra.
E conta, com emoção e gratidão, como foi recebida por Estrela Carvas, amiga e confidente de Amália, que hoje vela pela Casa-Museu. “Eu ainda não falava português, ela falava um pouco de inglês. Sensibilizou-me muito a maneira como me recebeu, tão simples e com tão grande amizade, e, com tão grande amor por Amália, me levou em visita guiada pela casa. Numa parede vi referências à passagem de Amália por vários cantos do mundo, mas nada da Rússia. Mas Estrela Carvas disse-me que ela cá tinha estado. Depois, encontrei o livro Amália – Uma biografia, de Vítor Pavão dos Santos, e, na lista das tournées, a informação de que Amália deu, em Maio de 1969, vários concertos na então União Soviética.
“E eu pensei – eu sou bibliotecária, agora regresso a São Petersburgo, pesquiso nos arquivos dos jornais e revistas da época, recolho informação e escrevo cá um destes artigos! Mas, imagine, no princípio não encontrei nada. Mas não desisti. E assim começou a minha investigação.” Entretanto, começou a estudar português, na Faculdade de Filologia da Universidade Estatal de São Petersburgo, para compreender melhor a cultura que sentia tão próxima. “Quanto mais conheço a arte de Amália, mais me impressionam a sua profundidade e beleza. Eu estudei muito a literatura clássica Russa, e, para mim, a arte de Amália está ao mesmo nível. Ela tem essa nobreza de alma que transparece na nossa grande literatura”.
Teve ainda a ideia de procurar pessoas que estiveram presentes naqueles concertos. “A própria Amália disse que Fado é lamento, pranto, e isto está-nos muito próximo. Há fados alegres e fados muitos tristes, sobre a solidão, o medo, mesmo o amor à Pátria. Agora, vivemos em tempo de paz” - Natália fica silenciosa um momento - “mas então, tínhamos passado por uma guerra horrível, quanta dor e sofrimento, em geral todo o século XX parece um pesadelo, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução terrível, a Guerra Civil, depois repressão, a Segunda Guerra Mundial, outra vez repressão – horror. E, para além disso, era impossível falar abertamente do próprio sofrimento, chorar abertamente. É um paradoxo da nossa vida.” E por isso se interroga - o que terão as pessoas sentido ao ouvir esta cantora? Como foi o seu encontro com o fado? “A língua era desconhecida, mas aquilo que ela cantava não era possível esconder. O fado fala do que é também o nosso destino, da história da nossa vida.”
Natália tem vindo a construir, com grande sensibilidade, um arquivo-testemunho da arte de Amália, com todo o material que tem encontrado ao longo da sua pesquisa: o programa dos espectáculos na URSS, referências em jornais e revistas da época, uma entrevista que fez a Helena Golubeva - uma das maiores especialistas em língua portuguesa na Rússia, que esteve presente num dos concertos há quarenta anos… Aos poucos, vai traduzindo poemas-fado e artigos sobre Amália em Russo, e partilhando esse material na internet. Um exemplo do requinte com que o faz: na página dedicada à tournée por Leninegrado, o pormenor vai ao ponto de incluir a descrição do estado do tempo nos dias dos concertos.
Natália gostava que na Casa-Museu de Amália aparecessem registos da passagem pela Rússia, e de traduzir, um dia, o livro Amália – Uma biografia em Russo. Mas, mais importante, diz, “é o caminho – fado é caminho”: e continuará a sua viagem de descoberta pela cultura portuguesa, velando para que os laços que Amália criou se tornem realidade para cada vez mais pessoas.
por A. L. Simões Gamboa
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