Nascida em 1894, escreve os primeiros poemas por volta de 1915. A sua poesia por um lado liga-se a ambivalências finisseculares, por outro dramatiza a problemática do eu de um modo muito particular.
O Livro das Mágoas abre com um soneto decadentista por excelência, onde a mágoa, a dor e a saudade participam no mesmo universo convivencial de tortura e decadentismo. A tónica finissecular é-nos conferida pela propensão para o choro:
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!
No entanto, não menos importância do que a assumpção de uma tristeza intrínseca, é a definição de um espaço poético original e único, um espaço de eleição diríamos melhor. Esse espaço é definido pela própria poetisa:
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
E neste entrecho surge-nos uma primeira contradição. A poesia recém-eleita a uma área de primazia é também e sobretudo a poesia do nada:
Acordo do meu sonho… E não sou nada!…
A relação do poeta com a sua escrita é dolorida, chorada:
Calaram-se os poetas, tristemente…
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao Céu!…
Aliás, é porque se é poeta que se alcança a Dor. A poesia é base de definição de uma atitude de sofrimento.
Há um certo deslumbramento por uma sorte não alcançada que é ainda e sobretudo a sugestão de um local de eleição:
Eu sou a que no mundo anda perdida,
sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…
Um pessimismo tão fundo enleia-se na capacidade de sofrimento único, desde a alusão à vivência sozinha no “Castelo da Dor”, até à categoria de Castelã da tristeza a que se alcandora.
Problematizemos a relação que existe entre a poetisa e a escrita. Por um lado, existe a noção de que o Poeta é um sonhador, um criador de ilusões. Por outro, a de que poesia é a palavra iniciática, mas inaudível para a maior parte das pessoas. O poeta é um ser solitário por excelência. É aquele que fala da sua Dor e a transporta para um infinito. Quanto maior é o génio, mais pode transportá-lo a uma outra cultura, a uma maior capacidade de divinização. A vida é uma desgraça que se assume com imensa dor, uma infinita capacidade de a chorar. Há uma tomada de consciência de carácter trágico:
Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou como tu, um riso desgraçado!
Um constante conceber da vida como uma antecâmara da morte: esta não escolhe idades. Preexiste a um estádio de vida. Encontra-se sempre latente. A morte é a permanente temática em Florbela Espanca:
É tão triste morrer na minha idade!
E aqui remetemo-nos para a poesia finissecular de um António Nobre, cujos constantes apelos à morte produzem uma espécie de elegia dos comportamentos, suicídio antecipado, morte desejada. Penitência que se arranja na soturnidade das ambiências:
E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir: “Que linda a vida!…
Responde a minha Dor: “Que linda a cova!
Morte física ou onde se quebra o elo com a morte religiosa. Em Florbela, se existem laivos de religiosidade é mais num sentido místico, na procura de uma infinitude, de algo que escape a uma visão perplexa e inquieta.
Mas descodifiquemos o carácter profundamente sensual desta poesia, onde as mãos e os beijos adquirem uma forte conotação erótica. É uma sensualidade que tanto pode tocar as raias de uma entronização de eros, como pode diluir-se numa tristeza de um amor perdido ou não correspondido:
Beija-me bem!… Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei prà minha boca!…
Os estados excessivos de aniquilamento que caracterizam a sua poesia são eles próprios denunciadores de uma vida tumultuosa. Assim as paixões e o modo como são vividas.
Benditos sejam todos que te amarem!
Os que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão, fervente, louca!
A paixão é um estádio que tem de ser vivido num arrebatamento místico, mesmo que não haja qualquer correspondência com o real. De pathos se trata na ânsia de se chegar a uma perfeição, limbo existencial que toca um lirismo profundo.
Mas como é vivido o quotidiano? Sob o tédio que remete não ocasionalmente para um “lago plácido dormente”.
Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente:
o mesmo lago plácido dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr…
Daí se nota a mesma imperiosa atitude de radicalismo. Entre a morte que se projecta num elanguescimento dos sentidos, num torpor algo mediúnico e a vida do eros, enlouquecimento do ser.
Gosto da noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!…
O pendor nocturno revela-se nas tonalidades escolhidas, desde os tons de roxos até aos soturnos negros. A propensão para a morte, a noite, o negrume, a tristeza relva desse desequilíbrio entre os thanatos e o eros.
No Livro de Soror Saudade prolongam-se as grandes temáticas que entrevíramos no Livro de Mágoas.
O eros é mais forte que o thanatos, porventura:
Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu não te dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
E é em torno do eros que se encontra no labirinto das palavras uma chave para esse eu tão problemático. Talvez um dos sonetos mais labirínticos se condense em a noite que desce sobre os olhos cansados, adormecendo o ser. Para além desta ideia encontra-se um poema de grande sensualidade:
A noite vai descendo, sempre calma…
Meu doce Amor tu beijas a minh’alma
Beijando nesta hora a minha boca
Neste poema encontram-se alguns dos traços mais interessantes da poesia de Florbela. Por um lado, o pendor radical e afectivo pela noite, pelo crepúsculo. Por outro, a noite, triste e pessimista que se avizinha, transforma-se em embriaguez e loucura, em algo que se plasma no genesíaco, na embriaguez dos sentidos. A noite hcalma pressente o enlace dos amantes. Este poema radicaliza de um modo muito original a simbólica da noite, na sua proximidade da morte, abeirando-se calma e dramaticamente e transmudando-se numa apoteose de corpos que se amam.
Em “O Nosso Mundo”, Florbela erege um autêntico hino à vida e ao eros, original na sua poesia, tendo em conta o pessimismo que a caracteriza vulgarmente:
A vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?…
O mundo, Amor?… As nossas bocas juntas!…
A Vida é uma taça que se deve beber com sofreguidão. De tal modo que em “Prince Charmant” são já os velhos fantasmas que retornam, desde as tardes que se morrem voluptuosas até à procura do ser eleito que se não encontra nunca. Essa procura do príncipe encantado dilui-se na “Charneca Alentejana” e a poetisa é a esfinge que olha “a planície enorme”.
Embalo em mim um sonho vão, miragem:
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!
Os amantes fundem-se na paisagem, fazem parte intrínseca dela, ou então, como no poema “Tarde Demais”, quando finalmente o ser adorado regressa, já a poetisa se encontra morta:
E há cem anos que eu fui nova e linda!…
E a minha boca morta grita ainda:
“Porque chegaste tarde, ó meu Amor?…
Mas este Livro de Soror Saudade apresenta outros traços igualmente interessantes. Imagens de um Alentejo que se prende à voz dos “sinos e das noras”. As “verbenas” que se morrem silenciosamente e um franciscanismo muito angélico desde o simples apelo aos poetas e aos irmãos até ao chamamento mais forte da vida, do vento e do sol:
Trago na boca o coração dos cravos!
Boémios, vagabundos, e poetas,
Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!
Charneca em Flor é o livro publicado postumamente onde se concentram os poemas mais complexos de Florbela. Iniciemos um percurso por “Versos de Orgulho”:
O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém!
Porque o meu reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos céus,
E os oiros e os clarões são todos meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou alguém!
Neste entrecho o eu é um território inexpugnável, imenso, mediúnico, solitário porque único. Voltamos ao ego como centro de todas as problemáticas, de todos os dilemas. A insistência no Infinito, num horizonte sem fim, é o rasgar de limites para um eu que se pretende ilimitado.
Também a interrogação sobre a morte é de uma grande lucidez:
O que há depois? Depois?… O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?
A resposta é de um pessimismo muito florbeliano: tudo será melhor para além da morte.
Mas o erotismo é outro dos traços permanentes da poesia de Florbela. Charneca em Flor representa a consagração do eros subtil e suave, onde as mãos, a boca e o estreitar dos corpos se arriscam e se ousam:
Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
Ou então de um modo mais incisivo:
As tuas mãos tacteiam-se a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
É o brio de sol, de aroma, de prazer!
Em Florbela a marca do amor é também a de um donjuanismo onde a influência de um Mário de Sá-Carneiro se faz sentir, um pouco na ambiência do poeta de Orpheu:
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente?...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Neste entrecho o amor torna-se ele próprio subversor. Não interessa o objecto amado, mas o acto de amar. De um franciscanismo ingénuo passa-se a uma atitude radical onde se torna indiferente quem se ama, mas o acto de amar. Num outro poema, “Ambiciosa”, reverte-se para o homem/ Deus:
O amor dum homem? - Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem! - Quando eu sonho o amor dum deus!
Se era indiferente o objecto amado num soneto anterior, neste excerto o amor não pode ser mais humano, mais divino. Esta divinização prende-se com o enaltecimento do próprio eu. O ego é uma entidade complexa que tanto se deixa envolver, segundo a expressão de José Régio, num donjuanismo psicológico – amar este, aquele ou aqueloutro – num cortejar sem fim, como passa por uma sensualidade muito à flor da pele.
Se em Livro de Mágoas ainda se notava a nítida filiação em António Nobre, num apelo à Mágoa, à Dor, à atitude chorada, à medida que caminhamos na sua poesia, esta torna-se mais natural e pessoal, com uma carga erótica impressiva, num paganismo onde se mistura religiosismo e amor eterno. Como por exemplo:
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gosto das minhas mãos tontas de amor!
Sensualidade que é o grande traço desta poesia. Se não observemos ainda este excerto:
Ah, fixar o efémero! Esse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro
A poesia de Florbela é de uma grande expressividade dramática, possui uma carga emocional que a torna diferente da poesia sua contemporânea.
Daí que tenhamos escolhido esta poesia como paradigma de um tempo e de uma ambiência mental feminina, embora perdêssemos de vista porventura outras expressões literárias não tão perfeitas, mas mais triviais na sua resolução.
Contudo, as linhas gerais estão traçadas. Os anos 30 e 40 seriam anos mais frutuosos: Maria Archer, Irene Lisboa, Maria Lamas na prosa. E outros tantos nomes na poesia. Mas dificilmente com a qualidade de Florbela.
Por Cecília Barreira
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