Paul Celan: no Rastro Perdido da Experiência

“Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”.



Paul Celan, “Carta a Hans Benderm”, in Arte Poética – Meridiano e outros textos, ed. Cotovia, Lisboa, 1996.



Aquilo que mais nos impressiona, na abordagem da vida e obra de Paul Celan foi o modo trágico como o poeta assumiu a responsabilidade da sua época. Por isso, o fascínio de que se revestiu deve-se a essa dupla dimensão, entre o poeta, no “limiar do emudecimento”, e o ser humano, profundamente consciente da sua época e do seu tempo, tendo pago caro essa factura com os dissabores que isso lhe trouxe. O que diferencia o homem e a lenda?



Edith Silbermann[i], amiga de juventude de Paul Pessakh[ii] Antschel – nome verdadeiro de Celan - , refere esses aspectos que foram desvirtuados na sua biografia. Paul Antschel nasceu em 23 de Novembro de 1920, em Czernowicz, Bucovina (na Roménia). Filho único, Paul tem, desde cedo, o objectivo de ir para França estudar. E, de facto, parte em 1938, mantendo-se dois anos em Tours, a estudar medicina. É dessa data que nascem os primeiros poemas. Ela dá conta de um jovem ávido e iconoclasta, que defende corajosamente os seus ideais. As leituras de Marx e Nietszche, a par da poesia alemã, sobretudo Hölderlin e Rilke, mas também Goethe e Schiller, Heine, Trakl, Kafka, Hofmannsthal, entre outros, desenvolveram no poeta um gosto pela política e simultaneamente pela literatura. Para o grupo de jovens que acompanhavam Celan, a língua francesa “era a mais bela língua do mundo”[iii]. Liam Mallarmé, Valéry, Apollinaire, Baudelaire. Paul traduziu também sonetos de Shakespeare, poemas de Yeats, Apollinaire, entre muitos outros. Foi por este caminho que ele chegou à poesia.

Em 1940, começou a estudar russo e, nessa altura, começa a traduzir Sergeï Lessenine. A armada vermelha ocupa, entretanto, a sua cidade. Durante esse período, que vai de 1940 a 1941 (aquando das ofensivas de Hitler e recuo dos russos), os judeus não ousavam mostrar-se e revelar a sua religião, os seus costumes. Todavia, o irreverente Paul Antschel não se escondia e afrontava corajosamente esse medo. Como o relata Edith Silbermann, Paul adorava chamar a atenção sobre si próprio, o que lhe traria grandes desilusões.

É a partir de 1941 que os judeus são “empurrados” para o gueto, pelos alemães. Num dia em que ele sai miraculosamente de casa, antecipando o perigo e refugia-se, graças à sua amiga Ruth Lackner, numa fábrica de cosméticos, aguardando a chegada dos seus pais. Porém, a mãe de Paul negou-se, dizendo-lhe: “Não podemos escapar ao nosso destino”. Nesse ano de 1942, os alemães prenderam os seus pais, que foram levados para um campo de concentração e, no espaço de alguns meses, ambos assassinados.

Pouco tempo depois, o próprio Celan alista-se num campo, em Tabaresti, na Roménia, onde se sente mais seguro do que na sua cidade. O trabalho duro que aí realizava deixava-lhe tempo, porém, para ler e escrever, para traduzir, vivenciando a miséria, o desastre e a destruição, à sua volta. Temas como “a morte na neve” serão um dos mais recorrentes da sua obra poética, testemunhando a tragédia dos judeus e, sobretudo, a dor da morte dos seus pais. O frio glacial, as pegadas e vestígios que se dissipam na neve são essas tantas formas metafóricas de exprimir a morte, metáforas que se apresentam de modo constante na sua poesia.

A derrota dos alemães, em 1943, estava, todavia, tão próxima que se permitiu aos residentes de Tabaresti o regresso às suas cidades e Paul regressou, então, a Czernowitz. Na Primavera, os soviéticos entravam, pela segunda vez, na sua cidade. Paul avistava um novo período menos cruel. Evitou, por essa altura, a entrada no exército russo, com alguma ajuda, pois a guerra ainda não havia terminado. Em compensação, trabalhou como ajudante numa clínica psiquiátrica, onde se encarregava de tratar os soldados soviéticos com feridas na cabeça e em estado de choque. Para ganhar dinheiro, realizava traduções para ucraniano, num periódico local. Reuniu, nessa época, um conjunto de 93 poemas dactilografados e entregou uma outra colecção escrita à mão à sua amiga Ruth Lackner, para que ela os fizesse chegar a Bucareste e os entregasse ao poeta Alfred Magul-Sperber. No Outono de 1944 retoma os seus estudos de inglês, na universidade que foi reaberta pelos soviéticos e entregou-se à leitura de escritores hebreus.

Após o término da guerra, alguns deportados voltaram dos campos e, entre eles, encontrava-se o seu amigo, o poeta Immanuel Weiglass[iv]. Nessa época, Paul supunha que o seu tio, Bruno Schrager, tinha ficado em Paris, mas veio a constatar que o seu nome constava dos desaparecidos em Auschwitz, o que veio reacender o seu trauma. Começou, então, a escrever a primeira versão do poema “Fuga da Morte”, o poema que o celebrizou e que tantos dissabores lhe traria, numa polémica questão levantada por Theodor Adorno. Teve uma primeira publicação, em língua romena, no número de Maio de 1947, numa revista de Bucareste, Agora, graças à tradução do seu amigo Petre Solomon. Paul Antschel muda, então, o seu nome de Antschel para o anagrama Celan, que viria a conservar ao longo de toda a sua vida.

Felstiner dá conta do acontecimento terrível que parece estar relacionado com o poema, de forma mais directa. Num panfleto escrito por Konstantin Simonov, datado de 29 de Agosto de 1944, sobre o campo de extermínio de Lublin, o autor contava que durante os trabalhos no campo eram tocados tangos e fox-trots. Na revista romena, onde foi publicada a primeira tradução do poema, sob o título “Tango de Morte”, um ano antes da publicação do original, uma nota de apresentação dizia que o poema publicado era construído a partir da evocação de um facto real. Um grupo de prisioneiros, nesse campo, era obrigado a cantar canções nostálgicas enquanto os outros abriam valas comuns. Mas existe, ainda, uma outra fonte de informação, a qual dizia que, num campo próximo de Czernowitz (a cidade de Paul Celan), um comandante das SS obrigava violinistas judeus a tocar um tango, enquanto eram cavados túmulos e decorriam marchas, torturas e uções. Um dia, o comandante disparou contra toda a orquestra.

Música e morte entretecem-se, na poesia de Celan, evocando a atmosfera lírica de Schubert – A Morte e a Donzela - ou de Mahler, de Brahms e do Requiem Alemão, numa tentativa de harmonizar a mais dolorosa e insustentável vivência. Celebração, não da morte, mas daqueles que pereceram nos campos de morte, sob as condições mais desumanas que é possível imaginar-se e a dilaceração surge, de forma sublime, no poema “Fuga da Morte”:



Leite negro da madrugada bebemos-te de noite

bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite

bebemos e bebemos

cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados

Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve

escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete

escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham

assobia e vêm os seus cães

assobia e saem os judeus manda abrir uma vala na terra

ordena-nos agora toquem para começar a dança



O tema da “dança da morte”, a atentar nas palavras de E. Silbermann[v], já o havia preocupado antes. Celan conhecia bem os “Simulacros da Morte” de Hans Holbein e a tradição da dança macabra, nos poetas alemães e no imaginário medieval, onde a vida é de tal forma precária que o tema da “dança com a morte” assume uma visibilidade que o homem contemporâneo consideraria insuportável. Por outro lado, a questão prende-se igualmente ao problema da língua alemã. A língua em que Celan escrevia era a alemã, a mesma que os “mestres da morte” usavam. Essa terrível contradição – a de escrever numa língua que era a da sua mãe e também a dos seus carrascos – ocupava-lhe permanentemente o espírito e transformou-se numa das suas obsessões fundamentais e que se exprime da forma mais intensa na sua poesia, introduzindo nela uma profunda crispação:



(…)Mãe, eles escrevem poemas.

Oh,

mãe, quanto

chão do mais estranho dá o teu fruto!

Dá esse fruto e alimenta

os que matam! (…)[vi]



Quando Derrida[vii] fala da experiência da morte em Celan, refere-se, também, ao aspecto da morte, tal como ela é vivida na experiência da língua: “Parece-me, a cada instante, que ele deve ter vivido esta morte. De muitas maneiras. Deve tê-la vivido por toda a parte onde sentiu que a língua alemã era morta duma certa maneira, por exemplo pelos sujeitos da língua alemã que fizeram um certo uso dela: ela é assassinada, morta (…) A experiência do nazismo é um crime contra a língua alemã. O que foi dito em alemão sob o nazismo, isso é uma morte. Há outra morte que é a simples banalização, a trivialização da língua alemã, não importa quando ou onde. E, depois, há uma outra morte que é aquela que não pode chegar à língua por causa daquilo que ela é, isto é: posta em letargia, mecanizada, etc. O acto poético constitui, então, uma espécie de ressurreição: o poeta é alguém que tem a tarefa permanente, numa língua que nasce e ressuscita, não de lhe dar um aspecto triunfante, mas despertando-a como se desperta um fantasma: ele desperta a língua e para tornar viva a experiência do despertar, do retorno à vida da língua [sublinhado meu], é necessário estar próximo do seu cadáver.”

Esta experiência do limite da linguagem, de que tão bem falam Steiner (Langage et Silence) e Agamben (v. Le Langage et la Mort), Blanchot (sobretudo no livro que é dedicado a Celan, Le Dernier à Parler) aproxima Celan da experiência poética de Hölderlin[viii], também ele no limiar do perigo. A visão corrosiva de Celan está próxima, igualmente, da visão benjaminiana do perigo que sofre, a cada instante, aquele que lida com a linguagem e a tarefa alegórica. Mais ainda, ela aproxima-se de Benjamin, no que se refere à tarefa da rememoração, tema por excelência do pensamento hebraico, tomado na sua mais ampla dimensão e que se articula com a da temporalidade do poema. Ambos comungaram da questão da cesura e do limite do dizer, com ele, igualmente, a tarefa da rememoração enquanto alvo da sua escrita. Ainda que esse alvo se colocasse, no caso de Celan, no cerne do paradoxo da insustentável experiência dos campos. Alegoria e rememoração são pólos constitutivos da poesia de Celan, no sentido em que a única experiência possível de rememoração e de luta contra o esquecimento só pode ser levada a cabo pelo gesto redentor da escrita. No caso de Celan, é na e pela linguagem poética que ela se opera.

Ainda a esse propósito, cito o notável estudo de António Guerreiro, consagrado a Celan, “Paul Celan e o Testemunho Impossível”[ix]. António Guerreiro fala na tarefa trágica da poesia, no autor, definindo-a como o “limiar do emudecimento”[x]. No texto Arte Poética, Meridiano e outros textos, Paul Celan cruza o seu pensamento com o de Heidegger e Lévinas, numa tentativa de (re)definição do “ser do poema”, que nos remete para a dificuldade do poeta. “O poema mostra, e isso é indesmentível, uma forte tendência para o emudecimento.” Nesse texto extraordinário, pela sua clareza, Celan dá conta da natureza da poesia. O poeta é dominado pelo pathos, que é a experiência da linguagem, naquilo que nela confina – e com ela se entrelaça, obviamente - com a existência da realidade. António Guerreiro sublinha-o, dizendo: “E porque essa língua não está disponível desde logo, não existe senão através da experiência que leva o poeta ao encontro dela, ela é única.” Celan recusa, aqui, a ideia de uma correspondência poema-realidade, o que nos conduziria, aos seus olhos, a uma visão mimética e empobrecida da realidade. O poeta é o que luta por ir, com os meios de que dispõe, ao encontro da realidade, através da linguagem. Assim, a ideia de um correlato entre a palavra poética e o real é algo que não existe como um dado previamente estabelecido. Este correlato pode existir ao nível da linguagem enquanto forma de comunicação (e isto não passa de uma hipótese), mas nunca ao nível do “dizer poético, onde persiste inevitavelmente uma irredutibilidade entre a palavra e o real. A concepção mimética (e aristotélica) da poesia e da linguagem é, assim, repudiada por Celan.

Por outro lado, a ideia de univocidade do poema caminha, par a par, com a afirmação anterior. Tal é essa ideia da univocidade do poema, quando o poeta afirma: “O poema é solitário. É solitário e vai a caminho. Quem o escreve torna-se parte integrante dele.”[xi] Aquele que o escreve e o poema, embora sejam realidades díspares, na sua essência, confundem-se numa outra realidade, que é a do poema. Celan, não apenas recusa o mimetismo, como recusa igualmente o bilinguismo da língua[xii], reafirmando a sua univocidade.

Deste modo, tempo e poesia encontram a sua articulação no topos do poema e essa temporalidade é, na sua expressão mais vívida, a experiência da linguagem, no sentido em que o poeta “vai ao encontro da língua com a sua existência, ferido de realidade e em busca de realidade.”[xiii]. Como quem lança uma mensagem numa garrafa, dirigindo-se essencialmente a um “tu apostrofável”, o tempo do poema confunde-se com aquele que o escreve, como o afirma Celan, absorvendo-o[xiv], mas sustenta-se na frágil linha que se liga ao Outro, lugar onde o Eu se dissipa, libertando-se de si próprio.

Neste modo de pensar reconhecemos o próprio pensamento de Lèvinas, entendendo-se o poema, não apenas como o tempo da “respiração”[xv], como também o da direcção, o pôr-se a caminho do Outro, “falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro.”(p. 55). No vaivém do Eu para o Outro, o poema auto-sustenta-se na velocidade da respiração ou caminho, através da linguagem. Peter Szondi, amigo de Celan, compreendeu bem essa tripla e essencial função do poema, que ele tão bem analisou em vários dos seus poemas: “linguagem como figura, direcção e respiração.”

Esta caminhada para o Outro corresponde a um reconhecimento do instante desse encontro e as ressonâncias que, aqui, se ouvem, além de Adorno, evocam, também, Schleiermacher, Lèvinas, Martin Buber e Rosenzweig[xvi]. E nesse instante do encontro não há a mínima certeza nem qualquer apoteose, mas o que João Barrento designa por uma “imperceptível mudança de respiração”, o que atesta uma escuta do Outro e do mundo, dando-se num lugar que é já um impossível caminho, para parafrasear a expressão de Celan[xvii], onde as utopias se transformam em tal:

“(…)encontro alguma coisa que me consola um pouco por, na vossa presença, ter percorrido este caminho do impossível, este impossível caminho.

Encontro aquilo que une e como que conduz o poema ao encontro.”

“O impossível caminho de encontro ao outro” constitui-se como o paradoxo – e, enquanto tal, é condição alegórica da poesia - sobre o qual assenta toda a poesia de Celan. João Barrento[xviii] defende que a ancoragem da sua poética já não é o romantismo nem a ontologia de Heidegger, “em que a figura do «Autêntico» tem ainda um papel central.” Quando, nesse contexto da relação com o Outro e na caminhada para ele, Celan fala do poema autêntico, ele afirma: “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.”[xix] O poema, de acordo com Celan, na sua obscuridade e complexidade, é autêntico. O ofício do poeta constitui-se, como o afirma Celan na Carta a Hans Bender, de acordo com a condição necessária da verdade e do caminho para o Outro. A relação que Celan, nessa carta, estabelece entre “ofício de mãos” e “construção do poema” revela, também, a íntima articulação entre a realidade e a poesia.

A construção do poema obedece à sequência dialógica do Eu com o Outro, do poeta com a Verdade. Porém, essa caminhada, do poema impossível que “fala em nome do outro” é, na sua contradição íntima, uma caminhada na direcção do abismo. Transforma-se no “poema absoluto” que não existe ou na “magestade do absurdo”[xx]. E este absurdo é a lei do poema, tal como o é da tragédia, na desmedida que é a paradoxal fonte de criação poética. Somos levados à conclusão de que a configuração do encontro com o Outro é necessária, na poética de Celan e, para tal, evoque-se aqui a forma do des-inter-esse de que João Barrento[xxi] nos fala, de forma pertinente. Corresponde essa caminhada impossível a uma superação das poéticas do “hermetismo mais puro”, assim como Lèvinas a efectua da fenomenologia e da ontologia. A sua poética não é da “simples ordem de compreensão com os meios da linguagem, é antes anterior a todas as formas de compreensão imediatamente humanas (do verdadeiro humano): o encontro com o Outro.”[xxii]. Procura uma outra linguagem, que se construa como a verdadeira língua, capaz de ultrapassar os limites da linguagem. Poderíamos aí perceber a busca de Celan por uma ideia da criação da “nova” palavra ou palavra poética, a partir de uma relação intensificada entre o hermetismo e a cabala. Todavia, se é possível falar da magia da palavra em Celan, esta magia, no dizer de Yvette Centeno[xxiii], é uma “magia de inversão”[xxiv], pois “a palavra não cria, a palavra reduz ou aniquila”.

Como em Lèvinas (e também em Buber), a presença incontornável do Outro é o ponto arquimediano da sua poética que, embora não se lhe dirigindo, o contém. Daí que exista e, sobretudo, preexista uma dimensão ética que lhe é inegável. Como Barrento o assinala[xxv], será possível colocar a poética de Celan sob a forma de uma “poesia das vítimas”? Ou, para utilizar a expressão benjaminiana, como “salvação dos vencidos da história”? É justamente por isso que nos encontramos no limiar da mudez. “É impossível resistir ao apelo, à convocação imperativa do rosto do Outro, rosto sem rosto, porque, para Lèvinas, ele está para além das formas plásticas. Então, o poema enquanto acontecimento não é um acto da vontade que parte do sujeito, mas, antes, qualquer coisa a que o seu autor se submeteu, como que convocado por um chamamento. “O apelo do outro é irresistível, avassalador”[xxvi], algo que se abate sobre o poeta que, assim, se vê absorvido pelo poema, tornando-se “parte integrante dele.”

Esta é a dimensão ética[xxvii], na qual enraíza profundamente Celan, tomando Lèvinas como seu mestre de pensamento, ainda que não fale dele. Por isso, emergindo da fissura da linguagem, o poema corresponde à abertura do caminho por entre os limites da linguagem, no limiar da experiência do emudecimento.

No magnífico prefácio que João Barrento faz à sua tradução de Sete Rosas mais Tarde, estabelece uma relação íntima e indissociável entre uma poética que – paradoxalmente – se alimenta dessa “relação constante com o Outro” e, em si mesma, tende para o emudecimento radical, que é da ordem de uma poética do inefável, a que preside uma simultânea sacralização e violentação[xxviii] da palavra poética. Esta dupla dimensão opera sobre a poesia de Celan uma tensão que se manifesta no modo como a antinomia a dilacera. Os poemas de Celan querem dizer o horror extremo e o desabar da esperança através do silêncio. Por isso, o seu conteúdo, como o nota A.Guerreiro[xxix], citando Adorno, “torna-se negativo”.

Esse niilismo cósmico de que Yvette Centeno[xxx] dá conta, um niilismo que “anula o tempo e as suas fracturas”, que faz cessar toda a capacidade de nomear e recuar a existência “para o abismo da essência não-diferenciada” parece converter-se na força motriz do poema, numa proximidade com a mística da negação de Jacob Böhme. Como a autora o afirma, “Não há salvação possível na obra de Celan, que não aponta caminhos, não filosofa, apenas lambe feridas que não cicatrizam mais.” Não existe qualquer apaziguamento nessa poesia de um hermetismo que revela um mundo irreversivelmente contaminado, destruído. O hermetismo – e o cabalismo - da sua poesia reforça, através das suas imagens, esse esvaziamento do mundo e, ao mesmo tempo, permite a acentuação da intensidade dramática do real. Veja-se, por exemplo, no paradigmático poema “Cristal”:



Não busques nos meus lábios a tua boca,

Nem diante do portão o forasteiro,

Nem no olho a lágrima.



Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho,

sete corações mais fundo bate a mão à porta,

sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.



(continua)

Cortesia PNETLiteratura

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