POEMAS
A pomba para o cheina
Pontos de vista
entrecruzam as balas
e nós ensaiamos a pomba
desenhando-a encurvando-lhe
o dorso antes do voo
largando-a no prisma puro
dos olhares da multidão
Logo uma estrela fugaz
se lhe cola ao bico
Rodopiará no céu entre colunas
colossais de cogumelos
e sóis que a inflectem
mas bem aninhada no oco
habitáculo de penas
com a chave em nossa mão.
Trecho da Praia
Como por um ralo atrás da pupila,
vêem-me agir:
nada divide o caranguejo, dividindo
os lodos em seu sulco,
e também suas pinças se amotinam
à passagem, com sombra,
duma ave marinha…
E antes da chegada ascendente do mar,
ou que alguém module a voz
pela que da nuvem soou
no paraíso, amam-se na areia.
Enquanto do largo
o halo dum navio nocturno
se expande e irisa em seu redor.
Na sua primordial existência…
Na sua primordial existência
a poesia deixar-me-á da ternura
só o que é defensável
e à margem do papel em que escrevi
as cidades e os campos
através dos quais me acenou
apartará do meu paladar
o sabor do sagrado
com que ainda a nomeie
já não buscarei nos ensaios que cerco lhe moviam!
e nos ideais por que alheada
roçagou
que da janela eu não deslinde
de um cão em paz
a visagem ancestral
e a minha emoção seja enfim sedentária
e recém-chegada a noite finde
sem dar acordo de si.
A Guerrilheira
Eis a ocasião em forma de mulher
com a ponte do lábio galgando
a voz Seus cabelos ondulam
por dentro das estrofes
Na mesma noite dividida ao meio
como se um lado reflectisse no outro
a sombra que na folha me adelgaça os dedos
verte ainda alguns versos e pára
Para quê
Pergunta a sucessão dos meus perfis iluminados
pelo volteio das luzes contrárias
E desatam-se das luzes os seus reflexos
a noite desdobra-se em metades imperfeitas.
não sou anterior à escolha
Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.
há poetas com musa. Muitos.
Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.
Preciso de Qualquer Objecto
Preciso de qualquer objecto dos teus, uma coisa de que possas já desfazer-te, mas tenha sido tua, para trazer comigo, nestes dias.
Não me lembro se já te disse que o escritor norte-americano Ernest Hemingway andava com uma pata de coelho na algibeira. Os antepassados de teu pai, os meus, eram mágicos, bruxos, fetichistas.
Deixa-o à porta, eu hei-de vê-lo, querida.
Virei sempre com uma carta para ti. Quando não vier, é porque os sinos de Braga me estavam a ensurdecer, e fui dar uma volta.
Toma lá o orvalho e a rosa, meu amor.
Ninguém meu amor
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
PEQUENA BIOGRAFIA
Dinis Albano Carneiro Gonçalves (Sebastião Alba), poeta Moçambicano, nasceu no dia 11 de Março de 1940, na freguesia da Cividade, Braga. Em 1949 partiu com a família para Moçambique, onde viveu e escreveu durante muitos anos. Em 1965 publica o seu primeiro livro, Poesias. Exerce jornalismo. Em Outubro de 1974 dá à estampa O Ritmo do Presságio, na colecção O Som e o Sentido, da Livraria Académica de Lourenço Marques. Em 1978, publica A Noite Dividida. Cinco anos depois, abandona Moçambique, passando a viver em Braga. Em 1987, muda-se para Miratejo. Publica poemas na revista Colóquio/Letras. Em 1988 regressa a Braga, passando a viver só em quartos de aluguer. Torna-se andarilho e alcoólico. A 14 de Outubro de 1994, dá a sua mais longa entrevista a Michel Laban, professor universitário francês, que a inclui no volume: Moçambique - Encontros com Escritores (Edição da Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1998). Durante este período, vai dando forma definitiva aos poemas que virão a constituir a sequência inédita O Limite Diáfano. Em 1996, reúne num só volume, A Noite Dividida, o que considera ter ficado da sua poesia e que graças à iniciativa de Herberto Helder, foi posteriormente publicado pela Assírio & Alvim. A 14 de Outubro de 2000 morre, vítima de atropelamento; permanece sem ser identificado na morgue do Hospital de São Marcos durante três dias. Postumamente foi publicado Uma Pedra ao lado da Evidência.(Campo das Letras, 2000)
Cortesia de Um Buraco na Sombra
A pomba para o cheina
Pontos de vista
entrecruzam as balas
e nós ensaiamos a pomba
desenhando-a encurvando-lhe
o dorso antes do voo
largando-a no prisma puro
dos olhares da multidão
Logo uma estrela fugaz
se lhe cola ao bico
Rodopiará no céu entre colunas
colossais de cogumelos
e sóis que a inflectem
mas bem aninhada no oco
habitáculo de penas
com a chave em nossa mão.
Trecho da Praia
Como por um ralo atrás da pupila,
vêem-me agir:
nada divide o caranguejo, dividindo
os lodos em seu sulco,
e também suas pinças se amotinam
à passagem, com sombra,
duma ave marinha…
E antes da chegada ascendente do mar,
ou que alguém module a voz
pela que da nuvem soou
no paraíso, amam-se na areia.
Enquanto do largo
o halo dum navio nocturno
se expande e irisa em seu redor.
Na sua primordial existência…
Na sua primordial existência
a poesia deixar-me-á da ternura
só o que é defensável
e à margem do papel em que escrevi
as cidades e os campos
através dos quais me acenou
apartará do meu paladar
o sabor do sagrado
com que ainda a nomeie
já não buscarei nos ensaios que cerco lhe moviam!
e nos ideais por que alheada
roçagou
que da janela eu não deslinde
de um cão em paz
a visagem ancestral
e a minha emoção seja enfim sedentária
e recém-chegada a noite finde
sem dar acordo de si.
A Guerrilheira
Eis a ocasião em forma de mulher
com a ponte do lábio galgando
a voz Seus cabelos ondulam
por dentro das estrofes
Na mesma noite dividida ao meio
como se um lado reflectisse no outro
a sombra que na folha me adelgaça os dedos
verte ainda alguns versos e pára
Para quê
Pergunta a sucessão dos meus perfis iluminados
pelo volteio das luzes contrárias
E desatam-se das luzes os seus reflexos
a noite desdobra-se em metades imperfeitas.
não sou anterior à escolha
Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.
há poetas com musa. Muitos.
Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.
Preciso de Qualquer Objecto
Preciso de qualquer objecto dos teus, uma coisa de que possas já desfazer-te, mas tenha sido tua, para trazer comigo, nestes dias.
Não me lembro se já te disse que o escritor norte-americano Ernest Hemingway andava com uma pata de coelho na algibeira. Os antepassados de teu pai, os meus, eram mágicos, bruxos, fetichistas.
Deixa-o à porta, eu hei-de vê-lo, querida.
Virei sempre com uma carta para ti. Quando não vier, é porque os sinos de Braga me estavam a ensurdecer, e fui dar uma volta.
Toma lá o orvalho e a rosa, meu amor.
Ninguém meu amor
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
PEQUENA BIOGRAFIA
Dinis Albano Carneiro Gonçalves (Sebastião Alba), poeta Moçambicano, nasceu no dia 11 de Março de 1940, na freguesia da Cividade, Braga. Em 1949 partiu com a família para Moçambique, onde viveu e escreveu durante muitos anos. Em 1965 publica o seu primeiro livro, Poesias. Exerce jornalismo. Em Outubro de 1974 dá à estampa O Ritmo do Presságio, na colecção O Som e o Sentido, da Livraria Académica de Lourenço Marques. Em 1978, publica A Noite Dividida. Cinco anos depois, abandona Moçambique, passando a viver em Braga. Em 1987, muda-se para Miratejo. Publica poemas na revista Colóquio/Letras. Em 1988 regressa a Braga, passando a viver só em quartos de aluguer. Torna-se andarilho e alcoólico. A 14 de Outubro de 1994, dá a sua mais longa entrevista a Michel Laban, professor universitário francês, que a inclui no volume: Moçambique - Encontros com Escritores (Edição da Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1998). Durante este período, vai dando forma definitiva aos poemas que virão a constituir a sequência inédita O Limite Diáfano. Em 1996, reúne num só volume, A Noite Dividida, o que considera ter ficado da sua poesia e que graças à iniciativa de Herberto Helder, foi posteriormente publicado pela Assírio & Alvim. A 14 de Outubro de 2000 morre, vítima de atropelamento; permanece sem ser identificado na morgue do Hospital de São Marcos durante três dias. Postumamente foi publicado Uma Pedra ao lado da Evidência.(Campo das Letras, 2000)
Cortesia de Um Buraco na Sombra
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