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Florbela não consegue dormir, embora a noite tenha chegado há muito, sorrateira, com seus passos de cetim negro. Acende mais um cigarro - companheiro constante e traiçoeiro, cada vez mais presente e necessário.
Corre o dia 7 de Dezembro de 1930 e está quase a cumprir mais um aniversário. Pela primeira vez quer oferecer-se a si própria uma prenda única e derradeira. Contudo, não sabe se terá coragem, não sabe se terá mesmo chegado a hora. Já o tentou duas vezes e sente ainda o gosto amargo do fracasso, da frustração, mesclado com o ar piedoso dos outros. Sim, porque os outros sabem viver. Tudo para eles é fácil, tudo tem sentido, mesmo o que é inteiramente vazio e incongruente. Pelo contrário, ela é uma exilada da vida, uma inadaptada, imersa num oceano de tédio e incompreensão. Há pouco dias, escreveu no seu Diário «E não haver gestos novos e palavras novas». Tudo se gastou, até as palavras. O amor, aquela fonte de poesia, onde germinava a raiz de cada verso, também secou, como uma árvore esquecida, plantada por um agricultor negligente e preguiçoso.
A criada bate à porta suavemente.
- A senhora quer tomar alguma coisa? Posso trazer-lhe um copo de leite? – pergunta.
- Sim, Teresa, traga-o. Hoje fico neste quarto, talvez consiga dormir melhor. Peço-lhe que não volte a bater à porta e que não me venha acordar amanhã. Quero ter finalmente o meu merecido descanso, um repouso infinito, total e profundo. Há tanto tempo que não durmo!
A criada pousa, poucos minutos depois o copo cheio de leite sobre a cómoda de pinho castanho e deseja-lhe as boas noites. Sempre tão discreta e dedicada, aquela Teresa! Possui uma eficiência mecânica, mas simultaneamente suave e humana.
Lá fora, o vento entoa um lânguido lamento, que apenas o sussurrar da chuva acalma. Em Matosinhos, os dias cinzentos são mais frequentes, húmidos e sombrios se comparados com os da sua viçosa vila natal alentejana. Aí, embora nesta altura do ano o frio abrace a planície com garras de mármore, há mais luz e mais azul no céu.
Decide deitar-se, fecha os olhos e sente-se embalada pelo rumor daquela tempestade teimosa, mas algo serena. Dentro de poucos minutos, o irmão Apeles visita-lhe os sonhos, vem sempre habitar esse espaço onde o vazio começa a germinar. De novo, surge o radioso e trágico 6 de Junho de 1927. O hidroavião pilotado por Apeles Espanca, 1º tenente da Marinha, precipita-se no Tejo, cerca de meia milha a sul da Torre de Belém. No entanto, nos sonhos dela, ele flutua ileso nas águas transportando nas mãos dois fragmentos do aparelho... Sorri e estende-lhe a mão. Porém, quando ela o tenta abraçar, afasta-se rápida e progressivamente, desvanecendo-se como o nevoeiro. Mergulha como um filho de Neptuno nas águas do rio que ondulam na suavidade azul. Volta ainda a erguer os braços até se desvanecer definitivamente.
Solta um grito, sobressaltada, e o seu olhar choca com o branco das paredes do quarto.
Por Dora Gago
Cortesia de TRIPLOV
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