No Verão de 1978, quando tinha nove anos e vivia no bairro social de Marcy, em Nova Iorque, Shawn Carter - mais tarde, Jay-Z - viu um círculo de pessoas formar-se à volta de um miúdo chamado Slate, que estava a "rimar - 30 minutos de improviso, sem nunca perder o ritmo", transformado "como uma beata tocada pelo espírito". O jovem Shawn foi para casa nessa noite e começou a escrever as suas próprias rimas num caderno e a estudar o dicionário.
"Escrevia em todo o lado onde ia", recorda Jay-Z no seu novo e absorvente livro, "Decoded". "Se estivesse a atravessar uma rua com os meus amigos e me ocorresse uma rima, abria a minha pasta em cima de um marco do correio ou candeeiro público e escrevia a rima antes de atravessar." Se não tivesse o caderno com ele, corria para a "loja da esquina, comprava qualquer coisa, depois arranjava uma caneta e escrevia no saco de papel castanho". Isso tornou-se impraticável durante a adolescência, enquanto subia e descia ruas a vender crack, por isso começou a trabalhar a memória, criando "cantinhos na minha cabeça onde armazenava as rimas".
A seu tempo, esse amor pelas palavras daria a Jay-Z mais álbuns no primeiro lugar dos tops que Elvis e alimentaria a realização do seu sonho de rapazinho: tornar-se, como escreveu numa das suas primeiras letras, o poeta com "rimas tão provocadoras" que fosse "a key in the lock" - "o rei do hip-hop."
Em parte autobiografia, em parte comentários magnificamente ilustrados sobre o trabalho do autor, "Decoded" oferece ao leitor um retrato perturbador dos mundos duros por onde Jay-Z navegou na juventude. "Decoded" é menos uma memória ou manifesto artístico convencional que uma colagem elíptica, ao jeito dos puzzles: entre reminiscências descritas com toda a clareza, há lições apaixonadas de história da música que levam o rap a um contexto social e político, menções entusiásticas a Notorious B.I.G. e a Lauryn Hill, aulas de recuperação em calão das ruas ("cheese" e "cheddar", aprenderá o turista casual do hip-hop, traduzem-se como "dinheiro"), e comentários pessoais acerca da natureza extremamente competitiva do rap e das similaridades entre o rap e o boxe, e entre o boxe e a venda de drogas.
Jay-Z já antes mitificou a sua vida - muitas das suas letras mais relevantes são trabalhos de obstinada dramatização pessoal. As linhas básicas da história são conhecidas: a sua infância em Bed-Stuy durante a epidemia de crack, o abandono da família pelo pai, deixando-o "um miúdo despedaçado", a sua carreira como traficante, "tentando ascender no jogo e acrescentar alguns cifrões ao meu nome", o seu álbum de estreia, "Reasonable Doubt", em 1996 (altura em que, segundo ele, "era o rapaz de 26 anos mais velho que se podia conhecer"), a sua ascensão como estrela do rap, seguida pelo seu sucesso como produtor, empreendedor e director-executivo ("Não sou um homem de negócios/Sou um negócio, homem.").
Confiança não é coisa que falte a Jay-Z. Mas o abandono do pai e o duro código das ruas fizeram de Jay-Z, nas suas palavras, "uma pessoa reservada" - receosa de sentimentos ou de se expor demasiado, e experiente na arte do desprendimento. Momentos comoventes de vulnerabilidade (ver o seu pai muitos anos mais tarde, escreve ele, foi "como ver-me a um espelho", e "fez-me perguntar como podia alguém abandonar uma criança que era tão parecida com ele") estão disfarçados em notas de rodapé ou disseminados ao longo de cenas inquietantes do passado do autor e da sua infância no bairro social, quando "os adolescentes usavam armas automáticas como se fossem ténis", e ele vendia "crack a toxicodependentes que estavam a matar-se, acumulando as notas enrugadas que eles arranjavam sabia Deus onde, garantindo que tinham sempre as suas pedras para fumar".
"Decoded" não fala de vários episódios sombrios da vida do autor, como os alegados tiros, tinha ele 12 anos, contra seu irmão viciado em crack (que, de acordo com um artigo recente no "The Guardian", "não apresentou queixa e pediu desculpa ao irmão mais novo pela sua dependência"), ou o ter escapado ao que um artigo da Forbes.com chamou "uma tentativa falhada contra a sua vida" depois de "uma disputa com traficantes rivais".
Jay-Z também não romantiza os seus dias na rua nem se desculpa por eles. Acerca da agora omnipresente "Empire State of Mind", diz que, quando ouviu pela primeira vez a música, tomou a decisão de a "sujar", de "contar histórias do lado duro da cidade", incluindo algumas referências ao tráfico de droga - "Welcome to the melting pot/ Corners where we selling rocks" (Bem-vindo ao melting pot/Esquinas onde vendemos pedras) - e ao sexo promíscuo - "The city of sin is a pity on a whim,/Good girls gone bad, the city''s filled with them" (A cidade do pecado dá pena/As boas raparigas tornaram-se más, a cidade está cheia delas).
No final, "Decoded" mostra ao leitor como os artistas de rap trabalham sempre na mesma série de temas familiares (tráfico, festas e "o tema mais familiar na história do rap - porque estou drogado"). "Éramos miúdos sem pais, por isso encontrámos os nossos pais nos discos e nas ruas e na história e isso foi uma dádiva. Pudemos escolher os ancestrais que inspirariam o mundo que construiríamos para nós mesmos. Isso fez parte do ethos desse tempo e desse lugar e ficou incrustado na cultura que criámos. O rap pegou nos restos de uma sociedade moribunda e criou algo de novo. Os nossos pais tinham partido, normalmente porque não queriam saber, mas nós pegámos nos seus velhos discos e usámo-los para construir algo novo", escreve Jay-Z no final.
Cortesia de i
"Escrevia em todo o lado onde ia", recorda Jay-Z no seu novo e absorvente livro, "Decoded". "Se estivesse a atravessar uma rua com os meus amigos e me ocorresse uma rima, abria a minha pasta em cima de um marco do correio ou candeeiro público e escrevia a rima antes de atravessar." Se não tivesse o caderno com ele, corria para a "loja da esquina, comprava qualquer coisa, depois arranjava uma caneta e escrevia no saco de papel castanho". Isso tornou-se impraticável durante a adolescência, enquanto subia e descia ruas a vender crack, por isso começou a trabalhar a memória, criando "cantinhos na minha cabeça onde armazenava as rimas".
A seu tempo, esse amor pelas palavras daria a Jay-Z mais álbuns no primeiro lugar dos tops que Elvis e alimentaria a realização do seu sonho de rapazinho: tornar-se, como escreveu numa das suas primeiras letras, o poeta com "rimas tão provocadoras" que fosse "a key in the lock" - "o rei do hip-hop."
Em parte autobiografia, em parte comentários magnificamente ilustrados sobre o trabalho do autor, "Decoded" oferece ao leitor um retrato perturbador dos mundos duros por onde Jay-Z navegou na juventude. "Decoded" é menos uma memória ou manifesto artístico convencional que uma colagem elíptica, ao jeito dos puzzles: entre reminiscências descritas com toda a clareza, há lições apaixonadas de história da música que levam o rap a um contexto social e político, menções entusiásticas a Notorious B.I.G. e a Lauryn Hill, aulas de recuperação em calão das ruas ("cheese" e "cheddar", aprenderá o turista casual do hip-hop, traduzem-se como "dinheiro"), e comentários pessoais acerca da natureza extremamente competitiva do rap e das similaridades entre o rap e o boxe, e entre o boxe e a venda de drogas.
Jay-Z já antes mitificou a sua vida - muitas das suas letras mais relevantes são trabalhos de obstinada dramatização pessoal. As linhas básicas da história são conhecidas: a sua infância em Bed-Stuy durante a epidemia de crack, o abandono da família pelo pai, deixando-o "um miúdo despedaçado", a sua carreira como traficante, "tentando ascender no jogo e acrescentar alguns cifrões ao meu nome", o seu álbum de estreia, "Reasonable Doubt", em 1996 (altura em que, segundo ele, "era o rapaz de 26 anos mais velho que se podia conhecer"), a sua ascensão como estrela do rap, seguida pelo seu sucesso como produtor, empreendedor e director-executivo ("Não sou um homem de negócios/Sou um negócio, homem.").
Confiança não é coisa que falte a Jay-Z. Mas o abandono do pai e o duro código das ruas fizeram de Jay-Z, nas suas palavras, "uma pessoa reservada" - receosa de sentimentos ou de se expor demasiado, e experiente na arte do desprendimento. Momentos comoventes de vulnerabilidade (ver o seu pai muitos anos mais tarde, escreve ele, foi "como ver-me a um espelho", e "fez-me perguntar como podia alguém abandonar uma criança que era tão parecida com ele") estão disfarçados em notas de rodapé ou disseminados ao longo de cenas inquietantes do passado do autor e da sua infância no bairro social, quando "os adolescentes usavam armas automáticas como se fossem ténis", e ele vendia "crack a toxicodependentes que estavam a matar-se, acumulando as notas enrugadas que eles arranjavam sabia Deus onde, garantindo que tinham sempre as suas pedras para fumar".
"Decoded" não fala de vários episódios sombrios da vida do autor, como os alegados tiros, tinha ele 12 anos, contra seu irmão viciado em crack (que, de acordo com um artigo recente no "The Guardian", "não apresentou queixa e pediu desculpa ao irmão mais novo pela sua dependência"), ou o ter escapado ao que um artigo da Forbes.com chamou "uma tentativa falhada contra a sua vida" depois de "uma disputa com traficantes rivais".
Jay-Z também não romantiza os seus dias na rua nem se desculpa por eles. Acerca da agora omnipresente "Empire State of Mind", diz que, quando ouviu pela primeira vez a música, tomou a decisão de a "sujar", de "contar histórias do lado duro da cidade", incluindo algumas referências ao tráfico de droga - "Welcome to the melting pot/ Corners where we selling rocks" (Bem-vindo ao melting pot/Esquinas onde vendemos pedras) - e ao sexo promíscuo - "The city of sin is a pity on a whim,/Good girls gone bad, the city''s filled with them" (A cidade do pecado dá pena/As boas raparigas tornaram-se más, a cidade está cheia delas).
No final, "Decoded" mostra ao leitor como os artistas de rap trabalham sempre na mesma série de temas familiares (tráfico, festas e "o tema mais familiar na história do rap - porque estou drogado"). "Éramos miúdos sem pais, por isso encontrámos os nossos pais nos discos e nas ruas e na história e isso foi uma dádiva. Pudemos escolher os ancestrais que inspirariam o mundo que construiríamos para nós mesmos. Isso fez parte do ethos desse tempo e desse lugar e ficou incrustado na cultura que criámos. O rap pegou nos restos de uma sociedade moribunda e criou algo de novo. Os nossos pais tinham partido, normalmente porque não queriam saber, mas nós pegámos nos seus velhos discos e usámo-los para construir algo novo", escreve Jay-Z no final.
Cortesia de i
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