"Esperam que diga que a vida é um romance do Lobo Antunes? Uma mota em contramão, uma planta que morreu, um monopólio sem dados?". A poesia saiu à rua e agora diz-se assim. Seja um fumador passivo do novo vídeo dos Social Smokers, Dilúvio Paradoxal:
Eles sobem ao palco, agarram o microfone e enfrentam o público. Têm três minutos para mostrar o que valem. O público aplaude, o júri vota e o vencedor descobre-se no final das eliminatórias. Não são cantores, mas antes poetas. Autores de uma poesia oral, contemporânea e popular. Às vezes, no papel, perde todo o interesse, quase não faz sentido. São palavras escritas para serem ditas, que também se dizem com o corpo.
As noites de Poetry Slam, assim se chama o fenómeno, decorrem mensalmente no Music Box, em Lisboa, já há quase dois anos. Têm ganho popularidade acompanhando o crescimento do movimento nas cidades europeias. Não se trata de hip-hop, nem de uma tertúlia, embora tenha coisas de ambos. Estará próximo do spoken word, mas às vezes lembra uma noite de fados. Nasceu em Chicago, nos anos 80, como forma de expressão poética da classe operária, longe das elites.
Silva o Sentinela, Biru e Jorge Vaz Nande foram três frequentadores assíduos das noites de Poetry Slam do Music Box. Deram nas vistas. Chamaram particularmente a atenção de Alex, músico dos Rádio Macau,e proprietário do Music Box, que os desafiou para fazer algo mais composto. Às palavras de cada um juntou a sua música e também imagens de vídeo. Estavam formados os Social Smokers. Apresentaram-se várias vezes ao vivo, no próprio Music Box, numas noites que chamaram Poetry Salame, e chegaram a atuar, com sucesso, num festival no Brasil. Foi ali que alguém descreveu o seu som como poesia para dançar. Uma definição feliz.
Este está longe de ser o primeiro disco de Alex, músico dos Rádio Macau, que nos últimos anos tem revelado uma paixão por música e poesia. Foi isso o que fez no projeto Wordsong, onde musicalmente revisitaram, também em estilo spokenword, a poesia de Al Berto e Fernando Pessoa. Alex realça as diferenças: "Considerar tudo a mesma coisa é como dizer que as bandas de flamenco são todas iguais". Silva, o Sentinela salienta a importância do que é dito: "Aqui as palavras são nossas, por isso sabemos mesmo o que queremos dizer e como queremos dizer". A slam, nas palavras de Alex, é o "do it yourself da poesia".
Ouvindo o concerto de apresentação, em dezembro (o disco só sai agora no início de fevereiro), percebe-se que as palavras ganham uma existência física, pela forma como são ditas e pela própria envolvência sonora e visual. "A música está lá para servir a poesia", explica Alex. E o que realmente enriquece o projeto, além dessa sensibilidade musical, são as diferenças entre as três vozes. Silva, o Sentinela, por exemplo, tem um estilo que se aproxima mais do hip-hop, é da sua autoria o primeiro clipe do grupo, Até aqui está tudo bem, numa citação de O Ódio, filme de Mathieu Kassowitz. Ouve-se: "Contudo, também estou liso, mas tenho aqui umas ideias comigo, transporto um cérebro hiperativo". E foi precisamente a necessidade de transmitir essas ideias que levou Silva O Sentinela ao slam. Já tinha experimentado o hip-hop, mas não se deu bem com as suas regras. Os jogos de palavras são o forte de Biru, a alma negra do grupo, que talvez seja também o que mais convence em palco: "A vida é para ser bem passada, mas ela é servida crua. Por isso a gente se adapta , e agente se adequa". Por último, Jorge Vaz Nande, o que tem mais ares de escritor, e até ganhou uma Mostra de Jovens Criadores. É o que tem textos mais longos e uma tendência para contar histórias, como em Um Homem Chinês: "Esperam que diga que a vida é um romance do Lobo Antunes? Uma mota em contramão, uma planta que morreu, um monopólio sem dados?". A poesia saiu à rua e agora diz-se assim.
Cortesia de Jornal de Letras, Artes e Ideias
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