Por esta razão, talvez, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a prosa possa jamais levar a cabo por si a própria empresa milenar. Talvez apenas uma palavra na qual a pura prosa da filosofia interviesse, a certa altura, rompendo o verso da palavra poética e na qual o verso da poesia interviesse, por sua vez, dobrando em anel a prosa da filosofia seria a verdadeira palavra humana.
(Giorgio Agamben)
Realizando uma abordagem diretamente a partir do poema, o pensamento de Giorgio Agamben consegue iluminar, como poucos, aspectos da inteligência material poemática inerentes à dinâmica rítmico-semântico-sintática, tal qual um dia, entre nós, foi requisitado, entre outros, por Haroldo de Campos, Augusto de Campos (ambos vindos na esteira de Ezra Pound) e, mais recentemente, Roberto Corrêa dos Santos, que escreveu:
[1. Investimentos teóricos sobre o poema, apesar da longevidade desse objeto, não chegam a formar corpus relevante. 2. Predominaram estudos sobre os processos de composição técnica e retórica, exames pautados em modelos clássicos relativos ao gênero e seus constituintes. 3. Investigações diversas visaram a circunscrever certo número de caracteres, por modos humanistas e abrangentes, do fenômeno entendido por lírico, em diferença àqueles formadores dos também homogeneizados épico e dramático. 4. Bem pouco restou para o esboço da possível corporeidade de uma, diga-se assim, teoria do poema. 5. As mais valiosas propostas situam-se ainda no âmbito do chamado formalismo russo. 6. Nesse ambiente epistêmico traçam-se parte das melhores proposições reflexivas, bem como das melhores análises, ultrapassando-se aspectos consabidos. 7. Pesquisas quanto à inteligência do poema em seu caráter rítmico-semântico-sintático e dedicadas à sua estratégia de leitura tornaram-se exceções. 8. Movimento científico de igual porte vem a ser reposto nos anos 60 por meio do empenho da semiologia e da semântica estrutural. 9. Conhecer o poema descreve-se como uma vontade a levantar-se e a tombar de tempos em tempos por razões relacionadas ao resistente modo-de-existir disso a chamar-se poema. 10. Por sua singular (im)permeabilidade ao factum e por sua condição de manter-se firme historicamente em sua radicalizante insistência formal e temática, suas modificações mantêm-se quase imperceptíveis. 11. Os hábitos fixados para quem dele se aproxime acarretam processos receptivos duros.[1]
Efetivar, portanto, um investimento teórico a partir do poema, que, diminuindo sua aspereza, flagre, potencializando-os, alguns atos pensantes a regê-lo em sua materialidade através de procedimentos que a organizam, é uma tarefa considerável para que possamos fruir as intensidades poéticas, evidenciando-as, quando possível, como uma dinâmica do poema que, ela mesma pensada, dá o que pensar.
Como já dito no primeiro capítulo, a partir do século XIX, uma das maiores dificuldades da teoria literária é conseguir estabelecer uma diferença entre poema e prosa, já que, em um movimento de mão dupla, tanto o primeiro incorporou a segunda, como esta, aquele, misturando-se. Em muitos casos, através da radicalização do uso das imagens, dos ritmos, dos metros, das invenções sintáticas, das significações ou daquilo que Pound chamou de “melopeia”, “fanopeia” e “logopeia”, ambos já assimilaram uma “linguagem carregada de sentido ao máximo grau possível”[2], conseguindo uma maior condensação da forma verbal como requer, para o poeta americano, as exigências da poesia.
Transertões[3], um curioso ensaio de Augusto de Campos, oferece amostras sensíveis neste sentido. Nele, a preocupação não é negar o caráter da prosa euclidiana em nome do poético ali presente, mas de demonstrar como estruturas poéticas demarcam a diferença de uma prosa que incorpora diversos aspectos historicamente considerados poéticos, ajudando a criar a força desta escrita então híbrida em todos os aspectos. O poeta-crítico destaca a presença maciça do controle do ritmo pela artesania métrica do verso embutido na prosa, exemplificando-a com centenas de frases metrificadas (pelo menos 500 decassílabos significativos, com predominância dos sáficos e heroicos, acrescidos de mais de 200 dodecassílabos, dentre os quais muitos alexandrinos, como, por exemplo, “estrídulo tropel de cascos sobre pedras”, e versos livres) e padrões heterométricos que se irmanam a um completo domínio sonoro do encadeamento das palavras na frase.
Fora isso, ainda acentua diversas passagens com densas aliterações, sibilações, paranomásias, onomatopeias e figuras de linguagem como metáforas, metonímias e antíteses. Se uma prosa como, dentre outras, a de Euclides, absorve elementos poéticos, criando uma indiscernibilidade entre os gêneros, e se os poetas inventaram tanto o verso livre quanto o poema em prosa e o em constelação, como estabelecer a diferença entre poema e prosa? Essa pergunta não vela, obviamente, um desejo de refluxo que afaste o poema da escrita de ficção, ensaística ou outra prosaica de modo geral, mas expõe a tentativa de conquista de mais um elemento de compreensão da escrita, que nos leve a uma ampliação das possibilidades da própria escrita, da leitura e do pensamento.
Visando prolongar uma reflexão que passa por Everardo, o Alemão, Niccolo Tibino, Brunetto Latini e Dante, chegando à frase de Valèry apropriada por Jackobson, que diz ser o poema “a hesitação prolongada entre o som e o sentido”, os conceitos utilizados por Agamben para determinar o enjambement e a cesura como as únicas possibilidades de distinção entre o verso e a prosa estão em inteira consonância com seus arquissemas gerais. Nos quatro textos que definem “institutos poéticos” decisivos[4], todos ligados a limites e terminações, como o enjambement, a versura, o fim do poema, a cesura e a rima, tais termos são: hesitação, não-coincidência, deslocamento, cisma, disjunção, antagonismo, oposição, contraste, não correspondência, desacordo, descolamento, divergência, tensão, pausa, intervalo, parada, interrupção. Aproveitando o que escreveu Sophia de Mello Breyner Andressen, os “institutos poéticos” buscam mostrar que “há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema”[5].
A posição tomada pelo italiano não pode aceitar, como elemento primordial para o pensamento do poema – e, consequentemente, do próprio pensamento –, uma compreensão habitual para a qual, no enjambement, quando a pausa fônica que estaria ao fim de um verso passa a estar no seguinte, ou seja, quando o verso anterior, adentrando o próximo, ganha uma elasticidade que o estende para além de sua pausa métrica, esta “se torna a rigor inoperante e até inexistente se não está assinalada pela rima”[6]. Nesse caso, há a crença de que, sem a rima, a continuação fônica que estabelece o enjambement elimina e neutraliza a pausa métrica em nome da unidade do ritmo – em nome, poderia ser dito, do alongamento de um verso até a depressão da voz no interior do subsequente, fazendo com que a exclusão da pausa final prevista confunda o verso com a prosa em um “ponto de coincidência” ou em uma “bodas mística do som e do sentido”[7]. O enjambement, então, estaria a serviço da penetração da prosa no poema. Não que isto não seja passível de ocorrer nem que não seja até mesmo predominante em nosso tempo, mas a possibilidade agambeniana nos revela, com uma acurácia muito maior, o ponto de força que singulariza tal instituto como a diferença do poético: a hesitação e os termos afins não podem acatar a resolução da unicidade prosaica, mas, sim, manter os traços tensivos pelos quais, com o abismo do silencioso burburinho do enjambement, ritmo e sentido, ou verso e sintaxe, entram em um antagonismo essencial a favor do mostrar-se do poema em sua diferença.
O entendimento do verso provém de seu habitar, pelo menos virtualmente, em um cisma, de seu morar, ainda que virtual, em uma incongruência. Para Agamben, o discurso eminentemente prosaico é o que em hipótese alguma acata tal possibilidade do enjambement, enquanto poético é aquele que, pelo menos potencialmente, reside neste traço distintivo. Visto, ao lado da cesura, como a única garantia de uma diferença entre o verso e a prosa, o enjambement é formulado como a disjunção entre o limite métrico e o sintático, como um íntimo desacordo entre o ritmo sonoro e o sentido, como a oposição entre a segmentação métrica e a semântica, como o contraste entre a série semiótica e a série semântica. Uma simultaneidade das duas segmentações em desencaixe, das duas séries em derrapagem desigual, das duas intensidades em curto-circuito, dos dois tônus em cisalhamento, dos dois fluxos em movimentações tortuosas compõe as linhas de fuga do poema.
O enjambement leva o fim do verso a governar a linha, a gerir o sulco pelo qual o poema semeia sua beleza e pensamento desde seu princípio, provindo, daí, sua importância decisiva. Tornando-se seu núcleo constitutivo e ponto nevrálgico, o enjambement é o acontecimento que faz o verso nascer enquanto a singularidade que é. O verso só se torna o que é em seu fim, quando, na interrupção, ganha seu distintivo. No fim do verso, flagra-se um tempo de parada sonora e um lugar de interrupção plástica que podem condizer ou não com uma cessação sintática da oração, que é passível de continuar. Por exemplo, o poema Introdução à Arte das Montanhas, de Leonardo Fróes:
Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer. [8]
O poema começa (e se realiza quase todo ele) com um verso sem enjambement, já que nele o limite métrico e o sintático coincidem plenamente, ou seja, o sentido que nele começa e continua a ser esboçado finda ao término do verso, suas interrupções sonora e plástica combinam com a cessação sintática:
Um animal passeia nas montanhas.
Ao fim deste verso, tem-se a totalidade do que ele está dizendo desde seu princípio; a pontuação lhe dá um limite, fazendo com que nenhum sentido reste para além dele. Coincidindo, tanto a série semiótica quanto a segmentação semântica são simultaneamente interrompidas. Todas as possibilidades de sentido inauguradas pelo começo do verso e continuadas pela linha estão presentes em “Um animal passeia nas montanhas”. Claro que várias indeterminações de sentido permanecem nele (que animal é esse, que tipo de passeio é esse, que montanha é essa, o que vai acontecer a esse animal que passeia nas montanhas, como ele passeia...?), mas todas elas moram dentro do limite do verso, como potências dele. O enjambement está presente ali em um grau zero, como possibilidade (“Um animal passeia/ nas montanhas” ou “Um animal/ passeia nas montanhas”, para dar dois exemplos) que o poeta preferiu não cumprir.
Por Alberto Pucheu
Cortesia de PNETLiteratura
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