Na conferência que António Carlos Cortez proferiu no Centro Nacional de Cultura, no quadro do balanço literário da primeira década do século, ficaram claramente definidas três grandes tendências que animam a mais recente poesia que se escreve em Portugal. Por um lado, uma reacção ao realismo mecânico e excessivamente denotativo que foi moda nos primeiros anos da década; por outro lado, alguma recuperação da poesia entendida como puro trabalho de oficina ao nível da linguagem; por outro lado ainda a poesia como formato essencialmente rítmico (e com recuperação de alguma tradição lírica).
Dir-se-ia estarmos (de novo) virados para uma dominante estésica que reclama – ainda que sem manifestos ou apologias – um reatar da poiesis (a linguagem gerando-se a si própria), uma certa ‘desinstrumentalização’ face ao real e uma atitude de pesquisa em torno da proporção e da cadência. Como se o imediatismo ‘sem derrame’ tivesse ancorado noutras paragens. Como se a ideia de uma janela figurada que diria o real de modo pouco autotélico se tivesse convertido, de novo, no espírito prospectivo de laboratório e, portanto, de prazer construtivo.
Estes dados iniciais merecem um confronto com a perspectiva que, há uma década atrás, tentava projectar os caminhos da nossa poesia. Recorro ao que considero ser uma obra matricial deste tipo de conjectura, mais concretamente o texto de Fernando Guimarães de 2002, Em Direcção ao Fim do Século (publicado em A Poesia Portuguesa Contemporânea pela Quasi). Nesse texto, o autor referia três pistas para o que já então se designava, com alguma euforia, por “novíssima” poesia portuguesa. Correspondiam essas três pistas ao vitalismo, ao microrrealismo e ao revivalismo.
A primeira das três pistas, o vitalismo, foi perspectivada a partir de uma análise bastante objectiva. A ponderação dava ênfase à superação da antinomia des-construção vs. construção, tentando ilustrar a falência do movimento que, ao longo da modernidade, sempre ligara vanguardas e oficinas construtivas. Reagindo a este permanente intelectualizar da palavra poética, uma espécie de arte rude estaria a convocar o que Fernando Guimarães considerava ser a “tendência para privilegiar o que se possa revelar como instintivo, vital, marcadamente emocional”.
A segunda das pistas foi buscar a sua designação a Guilherme Merquior. O microrrealismo seria um contraponto à dominante simbólica e/ou à imagem de teor romântico. Esta tendência seria caracterizada pelo ímpeto descritivo e pelo cariz denotativo com que o real poético indexicalizaria o real do vivido. Como se a ordem indexical substituísse a icónica, recorrendo aos termos de C. Peirce.
A terceira das pistas referida no texto publicado em 2002 era porventura a mais óbvia: “…uma terceira opção que poderíamos situar na passagem do Modernismo para o Pós-Modernismo diria respeito à substituição de um espírito de vanguarda por um sentido totalmente diferente, o do revivalismo.”. Tínhamos aqui um modo paródico generalizado que pressupunha um horizonte de reactualizações muito aberto, ou seja, sem programa. Como se o devir evocatório passasse a integrar – como um dado intrínseco – a substância dos enunciados do presente.
Sendo sucinto e colocando de lado todos os mecanicismos, poderia conluir-se que a novidade se centra no ressurgir da perspectiva oficinal enfatizada por António Carlos Cortez, constituindo o pendor evocatório o factor de persistência entre as pistas fornecidas por Fernando Guimarães em 2002. De referir que o ‘novo’ é sempre uma força de expressão, quando não uma miragem. Ou seja, algum ‘regresso’ à fábrica oficinal pressupõe a revisitação de correntes do início dos anos sessenta (atenuando o intertexto mais próximo da ‘arte rude’ dos anos setenta), enquanto a evocação repõe inevitavelmente uma continuidade lírica que a conjectura de Guimarães não previra e que deve entender-se, como referiu Cortez, como reacção aos “realismos mecânicos” que, na sua obsessão ‘anti-derrame’, geraram amiúde – no início do século – uma poética de ‘palavra de ordem’ ou do mais elementar ‘topoi’.
Luís Carmelo
Cortesia de PNETLiteratura
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