Entrevista com Manuel António Pina, Prémio Camões 2011

O escritor e cronista Manuel António Pina foi recentemente distinguido com o Prémio Camões 2011. A decisão do júri foi unânime e rápida. Em apenas 30 minutos foi encontrado o nome que sucede a Ferreira Gullar. Leia aqui a última entrevista ao JL, publicado no n.º 1035, de 2 de Junho de 2010.

Nem uma palavra sobre gatos e ele vive com de uma dúzia em casa, o que desata a curiosidade de qualquer mortal. Tanto mais que os gatos também passam pelas suas conversas como por brasas e por mais do que um poema, atentos à escrita, por dentro dela. Mas a sua literatura está longe de ser um saco de gatos. Daí a inesperada gratidão: "Tenho que agradecer não me terem perguntado nada sobre gatos", diz com o seu quê de habitual doce ironia, estafado da insistência no pormenor da gataria, não dos gatos, evidentemente.

Também nem um assomo das histórias primordiais, do pânico de criança, amarrado à cadeira a comer a papa, enquanto a casa ardia, das constantes mudanças de morada e de amigos, por força do ofício do pai, secretário de Finanças, ou das lembranças do Sabugal, onde nasceu, em 1943, Nem sequer uma alusão à trovoada que fez desabar-lhe a escrita, o milagre das rosas e dos versos contra o medo. Tão-pouco a mítica referência de Winnie the Pooh, que nunca abandonou, a alma de jogador, da sueca ao póquer, noites dentro até ao almoço do dia seguinte, o inabalável coração de 'leão', a proximidade do budismo Zen, do xintoísmo, o cinturão de mestre em artes marciais, ou a inclinação para a hipocondria.

De tudo isso reza a crónica da sua vida, mas queríamos sobretudo tratar da arte do cronista talvez também ciência, agora que Manuel António Pina junta num novo livro uma centena e meia de crónicas.

Por outras palavras & mais crónicas de jornal, uma antologia organizada por António Sousa Dias, reúne sobretudo uma selecção das que tem escrito, cinco dias por semana, desde 2005, para o Jornal de Notícias, justamente chamada Por outras palavras, mas também noutras publicações, com destaque para a Visão.

A crónica será um 'lugar estranho', a "meio caminho" entre o jornalismo e a Literatura.

Um percurso natural, já que Pina é jornalista, 40 anos no batente, no JN, onde entrou como estagiário, enquanto estava na tropa, e saiu como chefe de redacção. E também poeta Ainda não é o fim nem o princípio do mundo. Calma é apenas um pouco tarde, Aquele que vai morrer, O caminho para casa, Cuidados Intensivos, Atropelamento e fuga e Os livros são alguns dos seus títulos, autor teatral e da dita literatura infanto-juvenil.

E podem separar-se as palavras como as águas? Não é primeira vez que publica um volume de crónicas. O primeiro, O anacronista saiu em 1994 e sobre a cidade onde vive desde os 17 anos, Porto modo de dizer, em 2002. E muitos mais poderia publicar, tantos milhares as que escreveu.

De tal modo que já interiorizou a medida, mil e cem caracteres, com algum eventual "bónus" muito regateado. A da última sexta-feira, 28, chamava-se A hipótese marciana, irresistível, mordaz, bem apontada à ordem do dia.

Outras são mais desprendidas da realidade política e social, do quotidiano.

Todas devedoras da mesma arte, que o digam os fiéis leitores dessas palavras que alinha dias úteis a fio, disciplinadamente. Uma "servidão", diz ele ao JL, numa entrevista feita (por razões pessoais suas) em diálogo por e-mail. Mas se também é rigorosa a sua disciplina poética, servo é, por certo do fazer do verso, das palavras com que interroga o mundo e a própria poesia.

Caso único, tão bem serve Manuel António Pina a dois amos.
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JL: Soube-se recentemente que tinha sido criada a primeira célula que pode chamar pai a um computador. E o cientista introduziu no programa frases de Joyce que de alguma maneira se inscreveram no adn dessa célula artificial: Esta é a crónica do tempo ou a crónica da criação literária?

Manuel António Pina: Da criação literária, só se for da de Joyce.

Mesmo sendo o ADN memória e embora a memória (incluindo a da literatura) constitua a matériaprima fundamental da literatura, a criação literária implica mais que matéria-prima, implica mão-deobra, trabalho, isto é, "fazer" (poiesis).

Curiosamente chama-se por vezes 'literatura' às 'bulas' dos remédios e aos tratados médicos. E há quem fale de uma ligação entre a ciência e a cultura ou mesmo a literatura. Interessam-lhe essas possibilidades do ponto de vista da poesia? E como cronista?

Sim, interessam (mais decerto na poesia do que nas crónicas). A poesia e a ciência partilham, interrogando o real interrogandose ao mesmo tempo a si mesmas, uma fronteira não raro difusa.

Por outro lado, a poesia é, como a ciência, uma prática artesanal, algo feito do próprio fazer. Hoje, quando já não há ninfas nos regatos, as ciências, principalmente as do infinitamente grande, como a astronomia, e as do infinitamente pequeno, como a física das partículas, ou como ainda, a vários títulos, também a biologia e a química, ou mesmo a neurologia, têm não só uma natureza, como dizer?, "poética" (não encontro agora palavra melhor) como, exprimindo-se fora da linguagem matemática, se socorrem às vezes de uma linguagem próxima da da poesia.

Como?

Diz Álvaro de Campos que "o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo"; mas também Stephen Weinberg (um Nobel da Física) fala igualmente de beleza (e de verdade) quando explica o seu deslumbramento com a hipótese de Witten de teoria unificada, a Teoria-M: "Quando Edward Witten a expôs, pensei: 'É tão bela que tem que ser verdadeira!'" Invertendo Novalis, talvez seja possível dizer hoje a propósito de muito do conhecimento científico que "quanto mais verdadeiro, mais poético".

Como poderíamos fazer o genoma de uma escrita como a sua, que é poesia, crónica, ficção e teatro? É uma sequência ou várias ramificações?

Postas assim as alternativas, escolho "ramificações". Embora a crónica não se adapte bem ao conceito de "ramificação" pois, pelo menos do modo especificamente jornalístico como eu a pratico, é de natureza diferente da literatura, mesmo que possa às vezes ter pontos de contacto com ela e ser, como ela, "abandono vigiado" (a expressão é de Alexandre O'Neill).

E não será apenas literatura "por outras palavras"?

Literatura não é certamente, embora eu não esteja certo do que seja ou não a literatura. Algumas vezes será, no máximo, jornalismo com saudades da literatura, ou literatura com remorsos de ser jornalismo.

ARTE EFÉMERA

Há uma arte da crónica?

Há. Em alguns casos, uma arte maior. Mas é sempre (repito: do modo como eu a pratico) uma arte efémera e voraz, prisioneira do tempo e das circunstâncias.

Por isso tenho oferecido resistência a propostas para publicar as minhas crónicas em volume, despojadas das suas circunstâncias (incluindo os constrangimentos concretos de escrita). Sinto uma espécie de culpa ao fazê-lo, como se cometesse uma traição.

Porquê?

Porque não são já crónicas, são anacrónicas (o meu primeiro livro de crónicas chama-se justamente O anacronista).

Havia um velho tipógrafo no Jornal de Notícias que se impacientava com o meu cuidado e preocupação com títulos e textos (eu era então responsável pelo fecho do jornal), dizendo-me que os jornais, no dia seguinte, só servem para embrulhar peixe. Mas não é o destino de tudo no dia seguinte, do jornalismo como da literatura, embrulhar peixe?

Uma crónica pode sempre acontecer, mesmo quando não ocorrem nem romances, nem versos?

Não é uma questão de poder ou não acontecer. Para quem, como eu, assumiu profissionalmente o compromisso de escrever uma todos os dias, tem que acontecer.

E isso não é constrangedor? Como consegue evitar a 'mecanização' ou a rotina do cronista?

Tenho um truque (uma espécie de ostinato rigore que provavelmente nem sempre funciona): não ceder ao previsível, tentar fazer de cada vez o máximo de que sou capaz é o mínimo que procuro exigir-me.

Nunca lhe ocorrem crónicas independentemente do compromisso, de 'geração espontânea'?

Raramente, e só aos fins-de-semana, quando não tenho crónica para escrever...

As suas crónicas ocupam-se mais da realidade ou estão mais perto do real do que os seus poemas? Ou falamos de duas realidades?

Na verdade, falamos de muitas e incoincidentes realidades. Parafraseando Mário de Sá-Carneiro, "é no real que ondeia tudo! É lá que tudo existe!"

O que o faz escrever uma crónica?

O que me faz escrever crónicas é, principalmente, como já deixei dito, a obrigação de as fazer, pois é assim que ganho a vida. Tratase de uma servidão, mas não é a própria vida uma servidão?

REGATEAR COM AS PALAVRAS

Mas como escolhe o assunto?

Como as faço? Sento-me diante do computador à procura, em jornais, em blogues, sei lá onde mais, de "assunto" (de uma faúlha capaz de incendiar ou, ao menos, chamuscar a vontade de escrever a propósito ou a despropósito) com a dead line à perna e confio-me ao improvável deus dos cronistas sabendo que, às 23 horas, aconteça o que acontecer, tenho que ter o morto feito à medida exacta do caixão dos 1100 caracteres, mais um título de duas linhas com o limite de 13 caracteres cada (regateando com os gráficos se, por exemplo, a linha calha de ter vários ii, que são caracteres um pouco mais estreitos que os demais consigo às vezes um bónus de um ou dois caracteres).

Costuma escrever a mais?

Entretanto, ao longo destes anos, interiorizei o ritmo e as crónicas já me saem quase sempre na medida mais ou menos certa; depois é só regatear com as próprias palavras.

Há sempre uma intencionalidade numa crónica? Por exemplo, de intervenção política, social ou cultural? E de cidadania?

O facto de ter que escrever todos os dias, quase sempre em cima do dead line, faz com que muitas das minhas crónicas tratem matérias políticas ou sociais, que são as que estão mais à mão. Não me move, no entanto, qualquer, como diz, "intencionalidade" de intervenção, política ou outra. Limito-me a reflectir (cepticamente a maior parte das vezes) em voz por assim dizer alta. Não tenho nada para vender a ninguém.

Não se considera portanto um opinion maker?

Valha-me Deus, não.

As suas crónicas situam-se mais no território do presente, enquanto os poemas remetem para a memória?

O presente é também construção, memória. A diferença fundamental entre uma coisa e outra é, acho eu, de natureza.

QUERO LÁ SABER DO FUTURO

Em que sentido?

Na crónica, a palavra é predominantemente instrumental de uma intenção de comunicação; na poesia, a intenção, se é possível falar de intenção, é a própria palavra, o seu "fazer" e, principalmente, o seu "fazer-se".

Poderíamos antes falar de inquietação? Com que palavras podemos dizer o fazer da poesia? Também há uma disciplina do poeta?

Sim, há uma disciplina. Rimbaud fala de "liberdade livre", mas a liberdade que existe na poesia é fundamentalmente a de escolher as suas próprias servidões. É essa escolha que faz que, mesmo na poesia metrificada e mesmo em formas canónicas como o soneto, os grandes poetas sejam tão diferentes uns dos outros.

Escreve crónicas para "memória futura" ou esse é o alcance da poesia?

Para "memória presente", as crónicas como a poesia. Quero lá saber do futuro!

Não gosta de falar da poesia que escreve, porquê?

Costumo furtar-me a perguntas dessas com uma resposta equívoca, mas nem por isso menos verdadeira: a minha poesia é tudo o que tenho a dizer sobre ela.

Com as crónicas é diferente?

Sim, com as crónicas é diferente. Falo delas sem constrangimento. Talvez porque tudo, nelas, seja mais óbvio, pelo menos para mim.

Disse um dia que talvez escrevesse para não ter medo: continua a ser assim?

Já o disse várias vezes e, por isso, deve ser verdade, como diria o Homem do Sino de A caça ao Snark, embora agora me pareça que deveria antes ter dito "por ter medo".

E isso aplica-se também às crónicas?

As crónicas não, as crónicas escrevo-as comezinhamente para ganhar a vida, já que ninguém a ganha por mim.

Lembra-se como começou a escrever crónicas? De que se ocupava na primeira?

Por acaso lembro-me dessa primeira crónica. Foi publicada no JN, pouco depois de ter chegado ao jornal, em 1971. Falava de um homem que vira adormecer de cansaço numa fila de espera do autocarro na Avenida dos Aliados, e da impaciência dos outros passageiros quando o autocarro chegou e ele não se mexeu. Havia nessa crónica uma frase que causou engulhos ao então director do jornal.

Qual?

"Ordem e tudo no seu lugar, como dizem os bem instalados".

Depois de esclarecido sobre a inocência da frase, o director disseme: "Olhe, talvez isso não queira de facto dizer nada, mas estou certo de que há por aqui alguma sacanice. Diga-me onde está para que a corte já, sem ser obrigado a ler tudo..." A partir da crónica da semana seguinte comecei, por isso, a meter duas 'sacanices', uma para ser cortada (o director não acreditava que as minhas crónicas dessem ponto sem nó, e temia naturalmente a intervenção da Censura) e outra para lá ficar...

Tem uma ideia de quantas já escreveu?

Já devo ter escrito uns bons milhares (que diabo, sou jornalista vai para 40 anos e sempre escrevi crónicas, primeiro semanalmente, agora diariamente e quinzenalmente).

Recorda alguma em particular?

Assim de repente, lembro-me dessa primeira de que antes falei e de uma ou outra a propósito da morte de amigos.

E de outros cronistas? Tem referências?

As minhas referências mais antigas de cronistas são talvez Rubem Braga, que lia nas páginas do Cruzeiro, e Carlos Drummond de Andrade. E, mais tarde, Fernando Assis Pacheco e Pedro Alvim nas páginas do Diário de Lisboa. Mais recentemente, Rui Cardoso Martins e o excelente Levante-se o réu, no Público.

Já recebeu vários prémios como cronista e publicou outros livros de crónicas. O que quis juntar no corpo deste novo volume?

O presente volume de crónicas nasceu da persistência do editor José da Cruz Santos, que há anos vinha insistindo comigo para que publicasse uma antologia. E da disponibilidade e generosidade de Sousa Dias, que se encarregou da selecção, entre quase três mil, de duas centenas e meia delas.

Foi Sousa Dias quem escolheu (recolhendo mesmo muitas que entretanto eu havia perdido) as que deveriam ser incluídas na antologia, quem as organizou tematicamente, quem as reviu.

Gabo-lhe a paciência, porque eu seria incapaz de fazê-lo.

Se as crónicas são de minha autoria, o autor do livro é, de facto, ele.

ÚLTIMOS POEMAS

O seu primeiro livro de crónicas, a que já se referiu, tinha um título fabuloso, O anacronista. Neste caso, optou por um título que repete o nome da sua crónica diária. Porquê?

Por razões comerciais, e porque muitos leitores do JN se me vinham dirigindo sugerindo a publicação das crónicas em volume (guardo a carta de um que me dizia que esse seria um livro que gostaria de poder deixar ao neto; o primeiro exemplar que eu receba há-de ser para lhe mandar), o título repete o das crónicas diárias que há cinco anos escrevo no JN: "Por outras palavras", e acrescentado, porque há também no volume textos saídos em outras publicações, de "& mais crónicas de jornal".

A literatura para os mais novos é outra vertente da sua escrita: Tem um modo próprio?

Claro que tenho (e como não teria?), mesmo que, frequentemente, seja um modo por assim dizer impróprio, já que não falta quem diga (gente que acha que a literatura é "para") que "isto não é para crianças".

Tem um novo livro de poemas quase pronto? O que tem escrito?

Quando, há pouco mais de um mês, entrei num hospital para ser operado a um aneurisma na aorta, deixei-o pronto, com título e tudo (Últimos Poemas), para a viúva publicar se quisesse. Como aparentemente sobrevivi, deixou de estar pw

A experiência da doença, dos últimos tempos, tem marcado a sua escrita?

Provavelmente terá (que sei eu?) marcado, embora a percepção disso não seja fácil.

O facto de ter chamado a esse livro, ainda não editado, Últimos Poemas implica a ideia de fim, de medo da morte?

Toda a poesia, e provavelmente toda a arte, toda a filosofia, todas as religiões, são, acho eu, movidas pelas perguntas fundamentais: "De onde vimos?" "Para onde vamos?" E, já agora, também pelo "Quem somos?". Isto é, pelo medo. "Riste porque tens medo", escreve Bataille. Poder-se-ia acrescentarse: escreves, ou tens fé, porque tens medo. Acho que é Borges quem diz que os temas de toda a literatura se podem reduzir a dois, o amor e a morte. O amor, através do sexo, está ligado ao abismo da origem do ser; a morte ao do seu desaparecimento.

É natural que os homens, perante tais abismos, se interroguem e, porque não encontram respostas, tenham medo. Talvez por isso a generalidade das religiões inclua uma cosmogonia e, simultaneamente, concebam um destino: para responder ao medo.

Como sente as várias homenagens que lhe estão a prestar? Ainda sem saber o que fazer?

E sem saber o que dizer. Há muita generosidade, mas também muita imprudência, em tudo isso. Eu, que me conheço, é que sei.

Este é mais um tempo de cronistas ou de poetas?

Estes são (todos são) "tempos de indigência" e, como Drummond diria, d s a cronistas. Nenhum tempo é apropriado à poesia.

Cortesia de Jornal de Letras, Artes e Ideias

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