Sempre que viajo no estrangeiro, procuro encontrar o maior número de boas livrarias que a minha agenda me permita visitar. Posso percorrer quilómetros a deambular de umas para as outras e, uma vez chegado a qualquer delas, passar um bom bocado a tentar compreender a sua "gramática", os princípios que a organizam, os pontos fortes e os pontos fracos que poderei registar para, se for caso disso, voltar lá uma próxima vez.
Nas cidades em que permaneci mais tempo, essa minha peregrinação a livrarias converteu-se numa espécie de assinatura. Em Bruxelas, em Estrasburgo, em Paris (mas também em terras de rápida passagem e em que a recomendação de uma pessoa amiga nos põe no caminho certo, como Londres, Madrid, Roma ou Florença), fiquei a saber onde encontrar as novidades e os livros de stock, quais as livrarias em que as duas coisas se combinam com interesse, em quais se pode encontrar pessoal realmente conhecedor daquilo que está a vender, capaz de dar uma opinião, de aconselhar, de encontrar rapidamente uma referência, de "saber" da matéria e de compreender o cliente. Em compensação, por cá e salvo raríssimas excepções, o pessoal de uma livraria podia estar a vender detergentes ou margarinas com a mesma pseudo--eficiência com que vende livros ou discos. O que me faz lembrar uma jovem lojista espevitada e ansiosa por mostrar bons resultados ao patrão que uma vez, numa casa de CD, me perguntou se já conhecia aquele concerto n.º 4 de Beethoven "tocado em opus 58"…
Para quem disponha de uma biblioteca razoável, em que exista já a bibliografia essencial a uma realização pessoal elementar como leitor ou como autor, o prazer de passar numa livraria, já conhecida ou recém-descoberta, prende-se muito com o inesperado: o livro que não se sabia que existia ou que acaba de sair sobre uma temática que nos interessa, a nova edição de um texto clássico que ultrapassa em rigor e qualidade as edições anteriores, uma obra que toda a crítica competente saúda como excepcional… Nessas compras, apenas uma ideia a ter presente: o livro de bolso, com todo o seu tremendo efeito na democratização da cultura, não dura os 300 anos que todo o livro que se preze deve durar…
Houve casos de viagens que fiz ao Brasil, ao Canadá e aos Estados Unidos que valeram sobretudo pelos livros e catálogos que lá pude adquirir. Refiro os catálogos porque certos museus são hoje verdadeiros templos para o livro de arte ou as obras de investigação sobre temas ligados às artes.
Nessas deambulações fiz descobertas muito interessantes, sem procurar perder-me pelos alfarrabistas onde as coisas a sério custam preços que eu não posso pagar. Mesmo assim, não se dispensa uma passagem pelos bouquinistes de qualquer cidade do mundo ocidental. Considero que fui por vezes bafejado pela sorte: em Leipzig já comprei um Petrarca do século XVI pelo preço da chuva e, em Estrasburgo, dois ou três livros portugueses impossíveis de encontrar entre nós e relativamente baratos…
Mas as livrarias, mesmo as melhores, são geralmente pobres numa área que me interessa especialmente e que é a da poesia. Algumas limitam-se a duas ou três prateleiras de coisas sem novidade, outras insistem em títulos muito conhecidos e muitas vezes reeditados, outras limitam-se a publicações de uso escolar e pouco mais. Ocorre-me que em Barcelona descobri livrarias em que a poesia ocupa um lugar verdadeiramente nobre e merecedor de um catálogo específico só por si.
Acontece que em Lisboa acabo de descobrir uma livraria integralmente dedicada à poesia. Fica na Rua Cecílio de Sousa e chama-se Poesia Incompleta, o que envolve um princípio de paradoxo: nunca encontrei livraria mais completa para a poesia do que esta Poesia Incompleta…
Dispõe de um catálogo impressionante de livros de poesia, não apenas em português, cobrindo praticamente todas as épocas, desde os primórdios da literatura até anteontem (só porque os livros que terão saído ontem ainda não foram distribuídos…). Tem à frente um jovem livreiro que profissionalmente conhece tudo: sabe dos autores, sabe das edições, sabe das antologias, sabe das revistas, aborda as matérias com a necessária precisão e um quam satis de ironia.
Vale a pena visitá-la, recomendação que faço a quem, para férias, queira levar leituras dessa área, apenas com a prevenção de que acabamos sempre por comprar mais um ror de coisas além daquelas que lá fomos procurar… Poesia Incompleta, se o género aguentar no mundo em que vivemos, acabará sem dúvida por se tornar um lugar de culto.
Por Vasco Graça Moura
Cortesia de DNOpinião
Nas cidades em que permaneci mais tempo, essa minha peregrinação a livrarias converteu-se numa espécie de assinatura. Em Bruxelas, em Estrasburgo, em Paris (mas também em terras de rápida passagem e em que a recomendação de uma pessoa amiga nos põe no caminho certo, como Londres, Madrid, Roma ou Florença), fiquei a saber onde encontrar as novidades e os livros de stock, quais as livrarias em que as duas coisas se combinam com interesse, em quais se pode encontrar pessoal realmente conhecedor daquilo que está a vender, capaz de dar uma opinião, de aconselhar, de encontrar rapidamente uma referência, de "saber" da matéria e de compreender o cliente. Em compensação, por cá e salvo raríssimas excepções, o pessoal de uma livraria podia estar a vender detergentes ou margarinas com a mesma pseudo--eficiência com que vende livros ou discos. O que me faz lembrar uma jovem lojista espevitada e ansiosa por mostrar bons resultados ao patrão que uma vez, numa casa de CD, me perguntou se já conhecia aquele concerto n.º 4 de Beethoven "tocado em opus 58"…
Para quem disponha de uma biblioteca razoável, em que exista já a bibliografia essencial a uma realização pessoal elementar como leitor ou como autor, o prazer de passar numa livraria, já conhecida ou recém-descoberta, prende-se muito com o inesperado: o livro que não se sabia que existia ou que acaba de sair sobre uma temática que nos interessa, a nova edição de um texto clássico que ultrapassa em rigor e qualidade as edições anteriores, uma obra que toda a crítica competente saúda como excepcional… Nessas compras, apenas uma ideia a ter presente: o livro de bolso, com todo o seu tremendo efeito na democratização da cultura, não dura os 300 anos que todo o livro que se preze deve durar…
Houve casos de viagens que fiz ao Brasil, ao Canadá e aos Estados Unidos que valeram sobretudo pelos livros e catálogos que lá pude adquirir. Refiro os catálogos porque certos museus são hoje verdadeiros templos para o livro de arte ou as obras de investigação sobre temas ligados às artes.
Nessas deambulações fiz descobertas muito interessantes, sem procurar perder-me pelos alfarrabistas onde as coisas a sério custam preços que eu não posso pagar. Mesmo assim, não se dispensa uma passagem pelos bouquinistes de qualquer cidade do mundo ocidental. Considero que fui por vezes bafejado pela sorte: em Leipzig já comprei um Petrarca do século XVI pelo preço da chuva e, em Estrasburgo, dois ou três livros portugueses impossíveis de encontrar entre nós e relativamente baratos…
Mas as livrarias, mesmo as melhores, são geralmente pobres numa área que me interessa especialmente e que é a da poesia. Algumas limitam-se a duas ou três prateleiras de coisas sem novidade, outras insistem em títulos muito conhecidos e muitas vezes reeditados, outras limitam-se a publicações de uso escolar e pouco mais. Ocorre-me que em Barcelona descobri livrarias em que a poesia ocupa um lugar verdadeiramente nobre e merecedor de um catálogo específico só por si.
Acontece que em Lisboa acabo de descobrir uma livraria integralmente dedicada à poesia. Fica na Rua Cecílio de Sousa e chama-se Poesia Incompleta, o que envolve um princípio de paradoxo: nunca encontrei livraria mais completa para a poesia do que esta Poesia Incompleta…
Dispõe de um catálogo impressionante de livros de poesia, não apenas em português, cobrindo praticamente todas as épocas, desde os primórdios da literatura até anteontem (só porque os livros que terão saído ontem ainda não foram distribuídos…). Tem à frente um jovem livreiro que profissionalmente conhece tudo: sabe dos autores, sabe das edições, sabe das antologias, sabe das revistas, aborda as matérias com a necessária precisão e um quam satis de ironia.
Vale a pena visitá-la, recomendação que faço a quem, para férias, queira levar leituras dessa área, apenas com a prevenção de que acabamos sempre por comprar mais um ror de coisas além daquelas que lá fomos procurar… Poesia Incompleta, se o género aguentar no mundo em que vivemos, acabará sem dúvida por se tornar um lugar de culto.
Por Vasco Graça Moura
Cortesia de DNOpinião
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