O texto de Augusto Rodrigues é o fio de Ariadne que nos permite descer aos labirintos da Capital da República e retornar à superfície com visão renovada. Não se trata de um enfrentamento ao Minotauro ou de uma descida ao mundo dos mortos; trata-se, nesse caso, da descida aos meandros arquitetônicos e urbanísticos da cidade criada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
O eu lírico, que narra sua viagem pelos labirintos da cidade (“Eu esperava ônibus”; “Abano a mão e alguém me leva, ilegal...”; “Depois ando e me perco”) é um ser tomado pelo encanto (“Brasília me prende, narcisa e Atena, para ser admirada. Ando e admiro: ladrilhos, pastilhas, veredas , vãos.”), pela novidade (“Passeio pelas entrequadras e acho graça das ruas sem nome”) e pela beleza marcada pelo espírito da modernidade. A sua tentativa é no sentido de apreender a alma do lugar, mas “A cidade: nebulosa aerada, expansão de fronteiras moventes”, lhe escapa. Faz-se necessário, então, utilizar instrumentos mais precisos (“Brasília é um código genético que precisa ser decifrado. Eu o observo do alto de meu microscópio...”).
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Munido de um vasto repertório cultural, que vai da música popular ao rock, como Aldir Blanc e João Bosco (“O poeta, bêbado e equilibrista”) e Legião Urbana (“uma legião urbana de cantos anuncia músicas urbanas.”), da poesia épica à lírica: Homero (“O pássaro na aurora de róseas águas) e Carlos Drummond de Andrade (“... vai ser coisa na vida”), passando por prosadores como Guimarães Rosa (“Quem descobriu Brasília? Foi Diadorim. Grandes Sertões: visagens.”) e Clarice Lispector (“A moça perto do coração selvagem...”), Augusto Rodrigues constrói um texto multifacetado, poético e marcado, como se pode ver, pela intertextualidade. O tom lírico e o épico se misturam numa obra de estrutura e linguagem modernas.
A referência a outros textos é a marca mais visível de Brasileia desvelada – o título já é uma referência ao famoso poema de Mário de Andrade: Pauliceia desvairada (também parodiado pelo poeta Nicolas Behr: Brasileia desvairada). Essa carga acentuada de referências a outros textos pode desagradar a alguns leitores, ávidos, talvez, de ouvir, em meio a essa multiplicidade de vozes, a voz do poeta. Como justificar esse recurso constante da referência? É que o poeta, para entender o mundo em que se encontra, esse cronotopos de novidades e surpresas, precisa misturar-se, metamorfosear-se em outros (“Eu sou Dédalos o fazedor de labirintos”; “E vejo surpresas proustianas na viçosa”). Labiríntico é o seu discurso, que vai do passado mítico ao presente marcado pela mudança. O universo popular da Rodoviária, por exemplo, liga-se, pela metáfora, ao contexto erudito, familiar de Proust. Pastel e madeleine juntos, desse modo, no mesmo espaço-tempo. O texto de Augusto Rodrigues ergue pontes para transitar por esse mundo de novidades.
É dessa forma que o poeta goiano, que adotou Brasília de corpo, alma e poesia, nos apresenta a Capital da República, conhece-a, desvenda-a e a desvela. E enquanto a desvela aos olhos do leitor, revela a si mesmo: um ser capaz de encantar-se, de deixar-se levar pela beleza. Ao mesmo tempo em que o poeta (ou o eu lírico) faz a sua leitura da cidade, é lido, traduzido por ela (“E Brasília me lê no inusitado das suas impressões”). Temos, com Brasileia desvelada, uma nova visão da Capital Federal. Nesse ponto, penso ser possível fazer um paralelo com outros textos poéticos que têm como tema Brasília. A poesia de Nicolas Behr, caracterizada, essencialmente, pelo humor e pela linguagem despojada, própria da chamada Geração Marginal ou Mimeógrafo, já havia nos apresentado Brasília do ponto de vista de seu plano urbanístico, tirando poesia daquilo que a faz diferente de outras cidades: “em paz com a cidade/meu fusca vai por esses eixos,/balões e quadras,/burocraticamente,/carimbando o asfalto/e enviando ofícios de estima/e consideração ao sr. diretor’ (eu engoli Brasília, do livro Por que construí Braxília). Embora marcada pelo humor, pela paródia, pela brevidade dos poemas, a poesia de Behr nos fez ver, de maneira crítica, a realidade brasiliense. Na poesia de Alexandre Pilatis, fruto já de uma releitura da produção de Nicolas Behr, domina o tom crítico, sarcástico, corrosivo, mas referindo-se, ainda, à paisagem urbanística da Capital: “tomei umas cervejas no beirute/e (como inexoravelmente/fizesse parte de uma raça pacífica)/fui analisar esteticamente/a modernidade artística do plano-piloto” (puzzle candango, do livro sqs 120m² comdce). A poética de Augusto Rodrigues dá prosseguimento a esse discurso sobre a Capital Federal, agora com o olhar de quem chega e tenta conhecê-la.
O poeta se nutre do diálogo com outros textos, da metáfora, do jogo de palavras, para dar conta dessa realidade. Temos flashes, fotogramas da cidade, revelando o olhar curioso e encantado de alguém ávido de apreender-lhe a alma. O fragmento, não a totalidade, é que nos invade os olhos. Porém a ambição do poeta é alcançar essa visão total do corpo e da alma de Brasília. Augusto Rodrigues mergulha nos labirintos da urbe levando consigo a voz de outros autores, pois esse mundo vasto, movente, esse novo sertão, só pode ser conquistado assim. Se na épica clássica o poeta evocava a ajuda das musas para conduzi-lo na sua jornada poética, nada mais justo que, na pós-modernidade, o poeta evoque ou incorpore no seu discurso o discurso de outros para ajudá-lo na travessia desse labirinto pós-moderno. E é exatamente isso o que o goiano Augusto Rodrigues faz com competência e sensibilidade.
(Esse texto tem como objeto de análise o livro inédito Brasileia desvelada,
do professor da UNB e poeta Augusto Rodrigues.)
Por Geraldo Lima
Cortesia de TRIPLOV
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