«Um só tema esteve ausente de todos os debates televisivos das recentes eleições legislativas: a política cultural. José Sócrates assumiu, no fim da passada legislatura, que tinha descurado a cultura. Disse também que essa falha seria colmatada no próximo ciclo - e, na realidade, a cultura é descrita como prioridade no programa deste Governo.
Não se aponta um valor orçamental mínimo para essa prioridade - aliás, só o programa do Bloco de Esquerda define um mínimo de 1% do Orçamento do Estado - mas estabelece-se uma série de medidas bem definidas, e em cruzamento com a acção de outros Ministérios, como o da Educação e o dos Negócios Estrangeiros (no que se refere à promoção exterior da língua e da literatura, acentuada neste programa).
No capítulo da cultura os programas eleitorais são, aliás, bastante coincidentes; a principal diferença está na importância relativa que lhe é atribuída - quase residual, no caso do PSD, que releva a preservação do património em detrimento da criação contemporânea, ao contrário, curiosamente, do CDS, que coincide com o Bloco de Esquerda na referência à necessidade de criar um estatuto do artista, no que se refere à segurança social e reforma.
Embora dedique um espaço reduzido às questões culturais, que considera subordinadas à educação e ao desenvolvimento económico, o programa do PCP recorda um estudo da Comissão Europeia que demonstra que a Cultura contribui com 2,6% para o PIB (produto interno bruto), valor esse que em Portugal se encontra reduzido a 1,4%, mas que, ainda assim, prova que as actividades culturais geram um valor muito superior ao que recebem do Estado.
O problema desta área específica do desenvolvimento nacional está na transformação das boas intenções em boas práticas - sobretudo, em práticas eficientes. A cultura é mais do que puro conhecimento ou concreta criação; é a atmosfera espiritual de um país, aquilo que dá forma ao seu carácter e consistência às suas capacidades. Isso que a torna natural como o ar é também o que faz a dificuldade das suas políticas específicas: a tentação do dirigismo é tão forte como a do abandono, e ambas são funestas. A 'ideia' de que o artista cria em qualquer condição tem impedido o desenvolvimento das artes, com efeitos catastróficos em áreas que não subsistem sem investimentos regulares, como o cinema, o bailado ou a música dita erudita.
Houve um investimento estruturado, e com resultados visíveis, na promoção da literatura portuguesa no estrangeiro, no fim da década de 90 e nos primeiros anos deste século - esforço que foi abandonado, com consequências desastrosas, nos últimos anos. Portugal tem tendência a iniciar estrondosamente projectos que depois deixa cair - o Pavilhão de Portugal, em abandono e degradação acelerada, é um símbolo desse investimento a fundo perdido, infelizmente tão típico.
Agora, promete-se apoio à digitalização de obras importantes do património cultural. Lamento que esse apoio chegue tão tarde: a digitalização integral da Biblioteca de Fernando Pessoa (que é, em si mesma, um infinito manuscrito do Poeta, já que profusamente escrita e anotada) foi realizada, a título gratuito e sem qualquer apoio estatal, por uma equipa coordenada pelos investigadores Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Vai ser disponibilizada online no fim deste mês.
Agora, promete-se que a RTP acentuará a sua dimensão de serviço público: no ano passado, aquando das comemorações dos 120 anos de Fernando Pessoa, a RTP apenas acedeu a passar uma série de trinta filmes de dois minutos ("Pessoa, Pessoas") com personalidades diversas dizendo poemas de Pessoa, integralmente produzidos e pagos pela Casa Fernando Pessoa - que só o pôde fazer pelo amor a Pessoa da equipa de cinema coordenada por Elvis Veiguinha e dos trinta participantes que acederam a oferecer o seu tempo e o seu trabalho, a bem da divulgação de Pessoa.
O investimento da RTP neste trabalho foi, exactamente, zero. Entretanto, a TV Globo, um canal de televisão privado do Brasil, realizou, em Lisboa, uma série documental sobre a vida e obra de Fernando Pessoa - série que talvez a RTP possa comprar e exibir, já que não entendeu ser sua obrigação fazer, pelo menos, outro tanto.
São apenas dois exemplos, que conheço bem, do muito que Portugal devia fazer, podia fazer e não faz. Espero que seja desta que isto mude.»
Texto publicado na edição do Expresso de 3 de Outubro de 2009, texto de Inês Pedrosa
Cortesia de Expresso
Não se aponta um valor orçamental mínimo para essa prioridade - aliás, só o programa do Bloco de Esquerda define um mínimo de 1% do Orçamento do Estado - mas estabelece-se uma série de medidas bem definidas, e em cruzamento com a acção de outros Ministérios, como o da Educação e o dos Negócios Estrangeiros (no que se refere à promoção exterior da língua e da literatura, acentuada neste programa).
No capítulo da cultura os programas eleitorais são, aliás, bastante coincidentes; a principal diferença está na importância relativa que lhe é atribuída - quase residual, no caso do PSD, que releva a preservação do património em detrimento da criação contemporânea, ao contrário, curiosamente, do CDS, que coincide com o Bloco de Esquerda na referência à necessidade de criar um estatuto do artista, no que se refere à segurança social e reforma.
Embora dedique um espaço reduzido às questões culturais, que considera subordinadas à educação e ao desenvolvimento económico, o programa do PCP recorda um estudo da Comissão Europeia que demonstra que a Cultura contribui com 2,6% para o PIB (produto interno bruto), valor esse que em Portugal se encontra reduzido a 1,4%, mas que, ainda assim, prova que as actividades culturais geram um valor muito superior ao que recebem do Estado.
O problema desta área específica do desenvolvimento nacional está na transformação das boas intenções em boas práticas - sobretudo, em práticas eficientes. A cultura é mais do que puro conhecimento ou concreta criação; é a atmosfera espiritual de um país, aquilo que dá forma ao seu carácter e consistência às suas capacidades. Isso que a torna natural como o ar é também o que faz a dificuldade das suas políticas específicas: a tentação do dirigismo é tão forte como a do abandono, e ambas são funestas. A 'ideia' de que o artista cria em qualquer condição tem impedido o desenvolvimento das artes, com efeitos catastróficos em áreas que não subsistem sem investimentos regulares, como o cinema, o bailado ou a música dita erudita.
Houve um investimento estruturado, e com resultados visíveis, na promoção da literatura portuguesa no estrangeiro, no fim da década de 90 e nos primeiros anos deste século - esforço que foi abandonado, com consequências desastrosas, nos últimos anos. Portugal tem tendência a iniciar estrondosamente projectos que depois deixa cair - o Pavilhão de Portugal, em abandono e degradação acelerada, é um símbolo desse investimento a fundo perdido, infelizmente tão típico.
Agora, promete-se apoio à digitalização de obras importantes do património cultural. Lamento que esse apoio chegue tão tarde: a digitalização integral da Biblioteca de Fernando Pessoa (que é, em si mesma, um infinito manuscrito do Poeta, já que profusamente escrita e anotada) foi realizada, a título gratuito e sem qualquer apoio estatal, por uma equipa coordenada pelos investigadores Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Vai ser disponibilizada online no fim deste mês.
Agora, promete-se que a RTP acentuará a sua dimensão de serviço público: no ano passado, aquando das comemorações dos 120 anos de Fernando Pessoa, a RTP apenas acedeu a passar uma série de trinta filmes de dois minutos ("Pessoa, Pessoas") com personalidades diversas dizendo poemas de Pessoa, integralmente produzidos e pagos pela Casa Fernando Pessoa - que só o pôde fazer pelo amor a Pessoa da equipa de cinema coordenada por Elvis Veiguinha e dos trinta participantes que acederam a oferecer o seu tempo e o seu trabalho, a bem da divulgação de Pessoa.
O investimento da RTP neste trabalho foi, exactamente, zero. Entretanto, a TV Globo, um canal de televisão privado do Brasil, realizou, em Lisboa, uma série documental sobre a vida e obra de Fernando Pessoa - série que talvez a RTP possa comprar e exibir, já que não entendeu ser sua obrigação fazer, pelo menos, outro tanto.
São apenas dois exemplos, que conheço bem, do muito que Portugal devia fazer, podia fazer e não faz. Espero que seja desta que isto mude.»
Texto publicado na edição do Expresso de 3 de Outubro de 2009, texto de Inês Pedrosa
Cortesia de Expresso
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