Perto de uma centena de cartas, enviadas pelo escritor Luiz Pacheco (1925-2008) a diversos destinatários, vai amanhã a leilão em Lisboa, juntamente com um importante acervo de outros documentos do autor, incluindo manuscritos, dactiloscritos e provas tipográficas de alguns dos seus textos essenciais. No total, são 158 documentos, a vender num só lote, a partir de uma base de licitação de 12 mil euros, valor que o organizador do leilão, Nuno Gonçalves, da livraria Otium Cum Dignitate, espera ver ultrapassado.
O leilão iniciou-se ontem, pelas 21h30, no hotel Fénix - onde estarão expostos, a partir das 15h, os 664 lotes a leiloar -, mas o espólio de Luiz Pacheco só irá à praça hoje. Neste primeiro dia, a peça mais interessante é, provavelmente, um exemplar do Cartucho, a célebre obra colectiva editada em 1976 por António Franco Alexandre, Helder Moura Pereira, João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães. Contendo poemas dos quatro autores, amarrotados e acondicionados dentro de um desses antigos pacotes de mercearia em papel pardo, Cartucho marca um momento de viragem na poesia portuguesa da segunda metade do século XX e tornou-se há muito um objecto mítico para alfarrabistas e bibliófilos. Será licitado com o preço base de oitocentos euros e é bem provável que o venha a ultrapassar.
Não há muitas outras verdadeiras raridades bibliográficas no catálogo, mas este leilão vale também pelo seu eclectismo, reunindo livros, manuscritos, correspondência, cartazes, fotografias, serigrafias e vários outros objectos mais dificilmente classificáveis, como uma carteira de fósforos na qual o poeta e ensaísta Alberto Pimenta fez imprimir a frase "A Cultura é o Desporto da Classe Média", ou um avental criado pela artista plástica Lourdes Castro para uma exposição de 1967.
O primeiro conjunto de lotes é constituído por correspondência e integra três cartas autógrafas de Salazar enviadas, no final dos anos 30, ao ministro da Guerra, general Ernesto Morais Sarmento. Uma delas é de carácter estritamente pessoal - Salazar lamenta nela a morte do filho de Morais Sarmento -, mas as outras tratam de questões militares e têm relevância histórica.
Não menos importante é o núcleo de cartas régias, assinadas por diversos monarcas portugueses, de D. João III a D. Maria I. Na mais antiga, datada de 1525, D. João III determina que o bacharel João Fernandes, cirurgião do rei e da infanta D. Maria, "haja em cada dia na despensa da Casa da Infanta uma iguaria de carne ou pescado, segundo o dia for".
Neste primeiro núcleo, a peça que poderá atingir uma licitação mais elevada é uma bula papal de Pio IV (1499-1565), relativa ao Mosteiro de Santa Maria de Oliveira, no bispado de Braga, um documento em pergaminho, que, segundo a leiloeira, se encontra em perfeito estado de conservação. O preço de partida será de 750 euros. Mas também não faltarão oportunidades para compradores menos endinheirados. Um conjunto de duas cartas de António José Forte a Luiza Neto Jorge, dois nomes fundamentais da poesia portuguesa contemporânea, irá à praça por uns modestos 20 euros.
O leilão do lote 477
Apesar de incluir algumas revistas literárias raras e valiosas e uma outra peça mais procurada, como Ansiedade, de Miguel Torga, este não é um leilão que tenha muitos lotes para bibliófilos puros e duros. Mas, em contrapartida, os genuínos leitores terão oportunidade de adquirir a baixo preço livros excelentes que, mesmo não estando demasiado valorizados no mercado alfarrabista, começam a ser difíceis de encontrar, desde primeiras edições de Ruy Belo até à obra de estreia de Cardoso Pires, Os Caminheiros e Outros Contos, editada em 1949.
O conjunto seria pouco mais do que uma miscelânea simpática, com coisas para todas as posses e gostos, se não fosse o lote 477, com o espólio de Luiz Pacheco. Logo a seguir ao leilão, no dia 26, a Biblioteca Nacional (BN) irá inaugurar uma exposição evocativa da vida e da obra do escritor. E não é de excluir que a BN tente comprar este conjunto de documentos.
Mesmo tendo em conta que Pacheco foi um epistológrafo prolífico e que esta centena de cartas é apenas uma parte das muitas que escreveu, sempre constituiria, a par dos muitos outros manuscritos e dactiloscritos aqui reunidos, um bom ponto de partida para se ir começando a formar um arquivo do autor de Teodolito (1963) ou Comunidade (1964).
Os organizadores dividiram os documentos em quatro grupos principais: cartas, textos diversos, provas tipográficas e um pequeno conjunto de dispersos, que inclui textos publicados em jornais, mas também as várias entrevistas que o autor deu e algumas das críticas que os seus livros receberam.
As cartas distribuem-se por 13 destinatários, com destaque para Mário Cesariny, a quem são dirigidas 35. Em algumas delas, o autor trata de assuntos editoriais que interessam a ambos, noutras ironiza com a conjuntura política da época e os seus moralistas de serviço, por vezes insulta o amigo e, mais frequentemente, pede-lhe dinheiro, um tema, aliás, recorrente na sua vasta correspondência. Mas este lado de escritor marginal - e poucos o terão sido tão literalmente como Pacheco - não deve fazer esquecer o facto de estarmos perante um grande prosador, que revia obsessivamente as provas de tudo o que publicava, como o demonstram as várias provas tipográficas emendadas que este mesmo lote inclui.
Cortesia de Público
O leilão iniciou-se ontem, pelas 21h30, no hotel Fénix - onde estarão expostos, a partir das 15h, os 664 lotes a leiloar -, mas o espólio de Luiz Pacheco só irá à praça hoje. Neste primeiro dia, a peça mais interessante é, provavelmente, um exemplar do Cartucho, a célebre obra colectiva editada em 1976 por António Franco Alexandre, Helder Moura Pereira, João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães. Contendo poemas dos quatro autores, amarrotados e acondicionados dentro de um desses antigos pacotes de mercearia em papel pardo, Cartucho marca um momento de viragem na poesia portuguesa da segunda metade do século XX e tornou-se há muito um objecto mítico para alfarrabistas e bibliófilos. Será licitado com o preço base de oitocentos euros e é bem provável que o venha a ultrapassar.
Não há muitas outras verdadeiras raridades bibliográficas no catálogo, mas este leilão vale também pelo seu eclectismo, reunindo livros, manuscritos, correspondência, cartazes, fotografias, serigrafias e vários outros objectos mais dificilmente classificáveis, como uma carteira de fósforos na qual o poeta e ensaísta Alberto Pimenta fez imprimir a frase "A Cultura é o Desporto da Classe Média", ou um avental criado pela artista plástica Lourdes Castro para uma exposição de 1967.
O primeiro conjunto de lotes é constituído por correspondência e integra três cartas autógrafas de Salazar enviadas, no final dos anos 30, ao ministro da Guerra, general Ernesto Morais Sarmento. Uma delas é de carácter estritamente pessoal - Salazar lamenta nela a morte do filho de Morais Sarmento -, mas as outras tratam de questões militares e têm relevância histórica.
Não menos importante é o núcleo de cartas régias, assinadas por diversos monarcas portugueses, de D. João III a D. Maria I. Na mais antiga, datada de 1525, D. João III determina que o bacharel João Fernandes, cirurgião do rei e da infanta D. Maria, "haja em cada dia na despensa da Casa da Infanta uma iguaria de carne ou pescado, segundo o dia for".
Neste primeiro núcleo, a peça que poderá atingir uma licitação mais elevada é uma bula papal de Pio IV (1499-1565), relativa ao Mosteiro de Santa Maria de Oliveira, no bispado de Braga, um documento em pergaminho, que, segundo a leiloeira, se encontra em perfeito estado de conservação. O preço de partida será de 750 euros. Mas também não faltarão oportunidades para compradores menos endinheirados. Um conjunto de duas cartas de António José Forte a Luiza Neto Jorge, dois nomes fundamentais da poesia portuguesa contemporânea, irá à praça por uns modestos 20 euros.
O leilão do lote 477
Apesar de incluir algumas revistas literárias raras e valiosas e uma outra peça mais procurada, como Ansiedade, de Miguel Torga, este não é um leilão que tenha muitos lotes para bibliófilos puros e duros. Mas, em contrapartida, os genuínos leitores terão oportunidade de adquirir a baixo preço livros excelentes que, mesmo não estando demasiado valorizados no mercado alfarrabista, começam a ser difíceis de encontrar, desde primeiras edições de Ruy Belo até à obra de estreia de Cardoso Pires, Os Caminheiros e Outros Contos, editada em 1949.
O conjunto seria pouco mais do que uma miscelânea simpática, com coisas para todas as posses e gostos, se não fosse o lote 477, com o espólio de Luiz Pacheco. Logo a seguir ao leilão, no dia 26, a Biblioteca Nacional (BN) irá inaugurar uma exposição evocativa da vida e da obra do escritor. E não é de excluir que a BN tente comprar este conjunto de documentos.
Mesmo tendo em conta que Pacheco foi um epistológrafo prolífico e que esta centena de cartas é apenas uma parte das muitas que escreveu, sempre constituiria, a par dos muitos outros manuscritos e dactiloscritos aqui reunidos, um bom ponto de partida para se ir começando a formar um arquivo do autor de Teodolito (1963) ou Comunidade (1964).
Os organizadores dividiram os documentos em quatro grupos principais: cartas, textos diversos, provas tipográficas e um pequeno conjunto de dispersos, que inclui textos publicados em jornais, mas também as várias entrevistas que o autor deu e algumas das críticas que os seus livros receberam.
As cartas distribuem-se por 13 destinatários, com destaque para Mário Cesariny, a quem são dirigidas 35. Em algumas delas, o autor trata de assuntos editoriais que interessam a ambos, noutras ironiza com a conjuntura política da época e os seus moralistas de serviço, por vezes insulta o amigo e, mais frequentemente, pede-lhe dinheiro, um tema, aliás, recorrente na sua vasta correspondência. Mas este lado de escritor marginal - e poucos o terão sido tão literalmente como Pacheco - não deve fazer esquecer o facto de estarmos perante um grande prosador, que revia obsessivamente as provas de tudo o que publicava, como o demonstram as várias provas tipográficas emendadas que este mesmo lote inclui.
Cortesia de Público
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