A existir, a ser equacionado por um qualquer levantamento estatístico, o registo do romance histórico em Portugal nos últimos anos provavelmente denunciá-lo-ia num dos lugares cimeiros, senão mesmo no topo, entre os géneros literários mais amiúde praticados pelos autores nacionais. Entre crónicas romanceadas de rainhas pretéritas – imbuídas de espíritos benfazejos, de ideais cristãos beneméritos das artes ou pugnando, altruístas, e avant son temps, em favor e defesa dos mais desfavorecidos – e revisitações dos tempos luso-imperialistas, pré e pós-descolonização (não isentas de “emboscadas” narrativas, no que respeita à leitura e interpretação dos factos pretensamente ficcionados, propiciadas por sentimentos e memórias desfiados na primeira pessoa e por decorrência não por completo sanadas nas suas feridas), o romance histórico português, poderá afirmar-se sem receios de nos afastarmos da verdade dos factos, encontra no público português terreno sólido para cada vez mais se afirmar. É verdade, sim, que tratar-se-á de um género com alguma dificuldade em escapar às temáticas supracitadas, o que em parte, e sobretudo no que respeita ao romance histórico de vertente colonialista, chamemos-lhe assim, se ficará a dever às nunca desvalorizáveis capacidades de auto-expiação ou autopsicanálise que a escrita de um tal género romanesco comportará, sobretudo quando, durante décadas, o romance português nunca se ocupou em pleno de uma tal temática, isto se exceptuarmos alguns arremedos assinados por quem, de viva presença, fez a guerra, o mais das vezes por militares operacionais que mais do que mão para a escrita revelavam, eles sim, uma vontade de, por via das palavras, expiar os dramas vividos e na pele experimentados. Vejamos, contam-se pelos dedos os relatos com mão literária desses tempos do ódio, recordando-me, assim de repente, de um Lobo Antunes, de um Vergílio Alberto Vieira, de um João de Melo, um Carlos Vale Ferraz e poucos mais, isto não entrando pela poesia, onde também, a bem da verdade, muitos outros exemplos não pontuariam, sendo de relevar, sem dúvida, vozes como a de Manuel Alegre ou, e sobretudo, a fulgurante e algo desconhecida poesia do brilhante poeta que foi Fernando Assis Pacheco. Voltemos, porém, ao âmbito e motivo destas perorações para neste cenário situarmos e darmos conta do novo romance de Ana Cristina Pereira, tão-só porque no domínio do romance histórico escapa às compartimentações prévias, optando antes por deter-se numa outra temática.
Para recriação romanesca, Ana Cristina Pereira, neste que é o seu terceiro romance editado na Presença, reincide no registo histórico (seja lá o que isso seja, desconhecendo-se as balizas exactas a partir das quais um romance deixa de ser apenas romance para ser romance histórico…), desta feita detendo-se sobre uma personagem histórica de grande aura. Nada mais nada menos que o rei poeta e creio que também dito agricultor Al-Mu’Tamid, emir e rei que foi primeiro governador de Silves, depois senhor da taifa de Sevilha, uma vez sucedendo ao seu pai no trono, Al-Mu’Tadid. É a história semi-ficcionada da sua vida, baseada em fontes que a autora no final do livro nomeia, nomeadamente os importantes escritos biográficos de Adalberto Alves e o livro «Portugal na Espanha Árabe», de António Borges Coelho, que aqui nos é dada a ler. Com conta e medida, desde já se retenha. Porque não se espraiando em demasia na efabulação de episódios da vida do rei, porque não se perdendo em excessivas decorações de teor descritivo, como é hábito acontecer noutras empreitadas do género, mais importadas com o pintar dos dias e dos tempos vividos, do que com a tentativa de chegar ao coração e ao pensamento das personagens. Ora o que Ana Cristina Silva faz é justamente optar por ir antes nessa direcção, isto é, dar-nos o tempo das personagens a partir do modo como elas pensariam os seus dias. O que daí resulta é que temos dos factos uma ideia interpretada à luz do pensamento das personagens, sobretudo, no caso, a perspectiva de Al-Mu’Tamid. Deste modo, os factos históricos surgem-nos não apenas como meros factos, distantes e frios, mas antes imbuídos de uma perspectiva humana, donde, de resto, a conseguinte reflexão sobre eles e sobre os seus efeitos. Daí decorre uma muito interessante leitura histórica, não apenas da sociedade desses tempos, mas de como as pessoas (nomeadamente os seus actores principais) pensavam e reflectiam os acontecimentos.
Relatada na primeira pessoa (estas são as memórias de um rei já moribundo, dadas a conhecer por um seu escravo e presumível filho depois de o encontrar morto sob uma palmeira no seu exílio forçado na remota Aghmât, no meio do deserto) esta história dá-nos a conhecer um homem que, vistas as coisas, foi vítima da história. Com essência de poeta, ele acaba por ceder ao longo da vida, e nas suas decisões, aos desígnios e desejos do seu pai, este um homem cruel, sedento de guerras, conquistas e vitórias, ansioso por acrescentar mais e mais territórios ao império árabe na Península. Contudo, a história movia-se, e quis o destino que Al-Mu’Tamid viesse ao mundo no exacto momento em que as hostes cristãs na Península, comandadas por Afonso VI, se reuniam para a anunciada e pressentida Reconquista. Isso veio a acontecer, vitimadas as fileiras árabes não só pelo recrudescer das forças cristãs como também por intestinas lutas entre os emires da várias taifas andaluzes, mesmo que no seu final aglutinadas sob a mão de ferro dos berberes almorávidas, estes cães ferozes na defesa dos preceitos mais conservadores e acirrados do Alcorão. Incapaz de lutar contra o rolo da História, mesmo que se revelando no campo de batalha digno sucessor dos créditos do seu pai, Al-Mu’Tamid dir-se-ia talhado para a miséria enquanto rei, já que perderia o seu trono, os seus territórios, as suas riquezas e até alguns dos seus filhos. No mais, como bom poeta (que era e que a História guardou, guarda como tal), apenas conservou a aura poética (escrevendo até ao fim dos seus dias, mesmo dentro de um calabouço – e aqui, no relato, fica apenas a dúvida de saber onde escrevia, pois encontrava-se numa aldeia de tendas no meio do deserto, quase sem vivalma e agrilhoado dentro de uma “masmorra”), o amor das suas mulheres, a amizade dos poetas, uma réstia de dignidade e a memória afectiva do seu povo. Um falhado ou um vencedor? Pelos trâmites da História, talvez um vencedor, pois apesar de um perdedor no seu tempo foi a ele que a História guardou, mais do que, por exemplo, a memória do seu pai ou outros conquistadores árabes seus predecessores. Nada de muito espantar; quem hoje, entre a massa de anónimos cidadãos, sabe nomear os ministros de, por exemplo, uma primeira república? Por outro lado, pergunte-se-lhes que foi Camões e todos saberão dizê-lo um dos nossos, senão o nosso maior poeta. Eis, ao fim e ao cabo, neste romance bem expressa a força imorredoira da poesia. Expressa, diga-se, de forma admiravelmente bem escrita.
Pedro Teixeira Neves
Cortesia de PNETLiteratura
Para recriação romanesca, Ana Cristina Pereira, neste que é o seu terceiro romance editado na Presença, reincide no registo histórico (seja lá o que isso seja, desconhecendo-se as balizas exactas a partir das quais um romance deixa de ser apenas romance para ser romance histórico…), desta feita detendo-se sobre uma personagem histórica de grande aura. Nada mais nada menos que o rei poeta e creio que também dito agricultor Al-Mu’Tamid, emir e rei que foi primeiro governador de Silves, depois senhor da taifa de Sevilha, uma vez sucedendo ao seu pai no trono, Al-Mu’Tadid. É a história semi-ficcionada da sua vida, baseada em fontes que a autora no final do livro nomeia, nomeadamente os importantes escritos biográficos de Adalberto Alves e o livro «Portugal na Espanha Árabe», de António Borges Coelho, que aqui nos é dada a ler. Com conta e medida, desde já se retenha. Porque não se espraiando em demasia na efabulação de episódios da vida do rei, porque não se perdendo em excessivas decorações de teor descritivo, como é hábito acontecer noutras empreitadas do género, mais importadas com o pintar dos dias e dos tempos vividos, do que com a tentativa de chegar ao coração e ao pensamento das personagens. Ora o que Ana Cristina Silva faz é justamente optar por ir antes nessa direcção, isto é, dar-nos o tempo das personagens a partir do modo como elas pensariam os seus dias. O que daí resulta é que temos dos factos uma ideia interpretada à luz do pensamento das personagens, sobretudo, no caso, a perspectiva de Al-Mu’Tamid. Deste modo, os factos históricos surgem-nos não apenas como meros factos, distantes e frios, mas antes imbuídos de uma perspectiva humana, donde, de resto, a conseguinte reflexão sobre eles e sobre os seus efeitos. Daí decorre uma muito interessante leitura histórica, não apenas da sociedade desses tempos, mas de como as pessoas (nomeadamente os seus actores principais) pensavam e reflectiam os acontecimentos.
Relatada na primeira pessoa (estas são as memórias de um rei já moribundo, dadas a conhecer por um seu escravo e presumível filho depois de o encontrar morto sob uma palmeira no seu exílio forçado na remota Aghmât, no meio do deserto) esta história dá-nos a conhecer um homem que, vistas as coisas, foi vítima da história. Com essência de poeta, ele acaba por ceder ao longo da vida, e nas suas decisões, aos desígnios e desejos do seu pai, este um homem cruel, sedento de guerras, conquistas e vitórias, ansioso por acrescentar mais e mais territórios ao império árabe na Península. Contudo, a história movia-se, e quis o destino que Al-Mu’Tamid viesse ao mundo no exacto momento em que as hostes cristãs na Península, comandadas por Afonso VI, se reuniam para a anunciada e pressentida Reconquista. Isso veio a acontecer, vitimadas as fileiras árabes não só pelo recrudescer das forças cristãs como também por intestinas lutas entre os emires da várias taifas andaluzes, mesmo que no seu final aglutinadas sob a mão de ferro dos berberes almorávidas, estes cães ferozes na defesa dos preceitos mais conservadores e acirrados do Alcorão. Incapaz de lutar contra o rolo da História, mesmo que se revelando no campo de batalha digno sucessor dos créditos do seu pai, Al-Mu’Tamid dir-se-ia talhado para a miséria enquanto rei, já que perderia o seu trono, os seus territórios, as suas riquezas e até alguns dos seus filhos. No mais, como bom poeta (que era e que a História guardou, guarda como tal), apenas conservou a aura poética (escrevendo até ao fim dos seus dias, mesmo dentro de um calabouço – e aqui, no relato, fica apenas a dúvida de saber onde escrevia, pois encontrava-se numa aldeia de tendas no meio do deserto, quase sem vivalma e agrilhoado dentro de uma “masmorra”), o amor das suas mulheres, a amizade dos poetas, uma réstia de dignidade e a memória afectiva do seu povo. Um falhado ou um vencedor? Pelos trâmites da História, talvez um vencedor, pois apesar de um perdedor no seu tempo foi a ele que a História guardou, mais do que, por exemplo, a memória do seu pai ou outros conquistadores árabes seus predecessores. Nada de muito espantar; quem hoje, entre a massa de anónimos cidadãos, sabe nomear os ministros de, por exemplo, uma primeira república? Por outro lado, pergunte-se-lhes que foi Camões e todos saberão dizê-lo um dos nossos, senão o nosso maior poeta. Eis, ao fim e ao cabo, neste romance bem expressa a força imorredoira da poesia. Expressa, diga-se, de forma admiravelmente bem escrita.
Pedro Teixeira Neves
Cortesia de PNETLiteratura
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