Há um ano João Botelho ignorou os conselhos de amigos, familiares e colegas. Avançou para a adaptação ao cinema do "Livro do Desassossego", fingindo não ouvir todos os que lhe chamavam de louco. Quer que Fernando Pessoa lhe retribua um favor que fez há 29 anos e vai andar em digressão pelo país a mostrar o filme - "como uma estrela rock". Durante 42 dias ajudou o desconhecido Cláudio Silva a transformar-se em Bernardo Soares e filmou uma Lisboa que não existe mas todos conhecemos. Um trabalho arriscado? "Sim, mas as pessoas precisam de arriscar mais. Estou tranquilo, sei que fiz um bom filme."
Ia começar por pedir que contasse como lhe foi parar a casa uma arca com os manuscritos do Pessoa.
É "a arca" do Pessoa. Estava a preparar o "Conversa Acabada" que era para ser um documentário sobre a troca de correspondência entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Nessa altura a sobrinha-neta do Pessoa ainda não tinha começado a negociar o espólio do poeta com o Estado, tinha-o em casa. Falei com ela, expliquei-lhe o que estava a fazer e ela emprestou-me a arca.
Tinha lá tudo?
Os manuscritos todos, com as anotações, embrulhados em papel. Os óculos, a boquilha, tudo. Milhares de folhas soltas, correspondência não enviada, uma canção que parecia do Cole Porter, em inglês. Coisas inacreditáveis. Mexia naquilo tudo com pinças e devolvi inteirinho, tal como a recebi. Mas há tanta coisa lá ainda por publicar, ficções, contos, um mundo inteiro. Há textos deles sobre cinema, guiões, coisas inacreditáveis que não param de surgir. Suspeito que a arca do Pessoa tenha um fundo falso.
Já lá estava o "Livro do Desassossego". Deu por ele?
Havia na arca uma série de papéis e anotações dispersas, "LD" e coisas assim por lá escritas. O "Livro do Desassossego" é uma coisa fantástica, um puzzle, um labirinto sem fim. Por isso é que eu me atrevi a fazê-lo. Dá para montar aquilo com referências sensoriais, encontrar uma ordem cronológica, tudo. E depois tem outra coisa óptima, que me permitiu fazer este filme: é um texto muito musical que existe "para ser lido em voz alta ou para ser lido em voz baixa, desde que se oiça", como escreveu o Pessoa. Mesmo com o meu sotaque, que é do Alto Douro, aquilo lido em voz alta tem uma dimensão extra-sensorial.
Lembra-se da primeira vez que o leu?
Estava numa fase estranha da minha vida quando o li, mas percebi logo que o meu sofrimento era completamente ridículo ao pé daquilo.
Em que momento decidiu que queria adaptar este livro ao cinema?
Há coisa de um ano. Porque na altura em que fiz o filme "Conversa Acabada" ajudei um pouco o Pessoa a ser conhecido, agora achei que era altura de ele me ajudar a mim.
Disse nessa altura que estava "cheio de medo". Continua?
Continuo com algum medo. Estou a adaptar uma grande obra e não a posso diminuir, tenho medo de não estar à altura de um livro destes. Podem fazer-se 20 mil filmes a partir do "Livro do Desassossego". Não queria que o meu fosse voyeurista ou especulativo - queria fazer um filme seco. E que agradasse as pessoas, que estas tivessem algum prazer a ver e ouvir.
Como conseguiu transformar um livro de 500 páginas feito de fragmentos num filme de duas horas?
Foi uma escolha. O guião ficou definido à 10º tentativa e ainda durante a rodagem cortei texto.
Como escolhia o que ficava e o que saía?
Através das hipóteses de associações cinematográficas . Saber que uma cena tinha de ser diferente da anterior e mesmo assim ligar à seguinte. O cinema são associações e ideias. Podem dizer "ah isto não tem narrativa". Tem narrativa que nunca mais acaba. A narrativa não é uma coisa única e o cinema não são as histórias - é a maneira de as contar.
Existe a ideia de que uma história tem de ter conflito entre personagens. Como é que resolveu isso num livro onde só há diálogos interiores?
Há conflitos parcelares e o conflito supremo: eu e Deus. E há uma luta para ser um génio reconhecido. O conflito em chegar a Deus, a física da metafísica. Este filme no ideal era uma tela escura só com texto, mas o João César Monteiro já fez isso.
O protagonista, Cláudio Silva, destaca-se no filme. Onde o encontrou?
É um tipo maravilhoso, devo-lhe o filme. Reparei nele numa peça do Teatro Nacional D. Maria II, "Tanto Amor Desperdiçado do Shakespeare" onde ele brilhava.
O que viu nele?
Primeiro era bonito, parece o Gabriel García Bernal ou o Johnny Depp. Dei-lhe um conselho no início que ele cumpriu sublimemente: disse para tentar não pestanejar - é uma coisa que se diz dos filmes portugueses, que os actores pestanejam muito. Ora, durante o filme inteiro ele pestanejou uma única vez quando acendeu um cigarro. Tem sempre os olhos abertos, com as luzes dos holofotes ligados, ele aguentou aquilo tudo. É preciso uma concentração, uma dedicação fantásticas. Aliás, ele entrou tanto na personagem que teve problemas em sair.
Como assim?
Dias depois ainda parecia o Bernardo Soares, o cabelo, a barba. Ainda tinha os mesmos gestos, o mesmo olhar, a mesma atitude. Ele esteve muito tempo lá metido. Trabalhei muito com ele um mês antes de começar a filmar. O Bernardo Soares não podia estar metido no realismo, tinha de ser um personagem à parte, sem tiques, tinha de ser fluído. Ele foi magnífico.
A Lisboa do filme é a sua ou a do Bernardo Soares?
Espero que seja a dele, mas no fundo sei que é a minha. É a cidade que eu achava poder coincidir com o percurso do Bernardo Soares, um tipo que inventou as viagens todas sem nunca sair do mesmo lugar. O Bernardo Soares é uma tripe.
Cortesia de i
Ia começar por pedir que contasse como lhe foi parar a casa uma arca com os manuscritos do Pessoa.
É "a arca" do Pessoa. Estava a preparar o "Conversa Acabada" que era para ser um documentário sobre a troca de correspondência entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Nessa altura a sobrinha-neta do Pessoa ainda não tinha começado a negociar o espólio do poeta com o Estado, tinha-o em casa. Falei com ela, expliquei-lhe o que estava a fazer e ela emprestou-me a arca.
Tinha lá tudo?
Os manuscritos todos, com as anotações, embrulhados em papel. Os óculos, a boquilha, tudo. Milhares de folhas soltas, correspondência não enviada, uma canção que parecia do Cole Porter, em inglês. Coisas inacreditáveis. Mexia naquilo tudo com pinças e devolvi inteirinho, tal como a recebi. Mas há tanta coisa lá ainda por publicar, ficções, contos, um mundo inteiro. Há textos deles sobre cinema, guiões, coisas inacreditáveis que não param de surgir. Suspeito que a arca do Pessoa tenha um fundo falso.
Já lá estava o "Livro do Desassossego". Deu por ele?
Havia na arca uma série de papéis e anotações dispersas, "LD" e coisas assim por lá escritas. O "Livro do Desassossego" é uma coisa fantástica, um puzzle, um labirinto sem fim. Por isso é que eu me atrevi a fazê-lo. Dá para montar aquilo com referências sensoriais, encontrar uma ordem cronológica, tudo. E depois tem outra coisa óptima, que me permitiu fazer este filme: é um texto muito musical que existe "para ser lido em voz alta ou para ser lido em voz baixa, desde que se oiça", como escreveu o Pessoa. Mesmo com o meu sotaque, que é do Alto Douro, aquilo lido em voz alta tem uma dimensão extra-sensorial.
Lembra-se da primeira vez que o leu?
Estava numa fase estranha da minha vida quando o li, mas percebi logo que o meu sofrimento era completamente ridículo ao pé daquilo.
Em que momento decidiu que queria adaptar este livro ao cinema?
Há coisa de um ano. Porque na altura em que fiz o filme "Conversa Acabada" ajudei um pouco o Pessoa a ser conhecido, agora achei que era altura de ele me ajudar a mim.
Disse nessa altura que estava "cheio de medo". Continua?
Continuo com algum medo. Estou a adaptar uma grande obra e não a posso diminuir, tenho medo de não estar à altura de um livro destes. Podem fazer-se 20 mil filmes a partir do "Livro do Desassossego". Não queria que o meu fosse voyeurista ou especulativo - queria fazer um filme seco. E que agradasse as pessoas, que estas tivessem algum prazer a ver e ouvir.
Como conseguiu transformar um livro de 500 páginas feito de fragmentos num filme de duas horas?
Foi uma escolha. O guião ficou definido à 10º tentativa e ainda durante a rodagem cortei texto.
Como escolhia o que ficava e o que saía?
Através das hipóteses de associações cinematográficas . Saber que uma cena tinha de ser diferente da anterior e mesmo assim ligar à seguinte. O cinema são associações e ideias. Podem dizer "ah isto não tem narrativa". Tem narrativa que nunca mais acaba. A narrativa não é uma coisa única e o cinema não são as histórias - é a maneira de as contar.
Existe a ideia de que uma história tem de ter conflito entre personagens. Como é que resolveu isso num livro onde só há diálogos interiores?
Há conflitos parcelares e o conflito supremo: eu e Deus. E há uma luta para ser um génio reconhecido. O conflito em chegar a Deus, a física da metafísica. Este filme no ideal era uma tela escura só com texto, mas o João César Monteiro já fez isso.
O protagonista, Cláudio Silva, destaca-se no filme. Onde o encontrou?
É um tipo maravilhoso, devo-lhe o filme. Reparei nele numa peça do Teatro Nacional D. Maria II, "Tanto Amor Desperdiçado do Shakespeare" onde ele brilhava.
O que viu nele?
Primeiro era bonito, parece o Gabriel García Bernal ou o Johnny Depp. Dei-lhe um conselho no início que ele cumpriu sublimemente: disse para tentar não pestanejar - é uma coisa que se diz dos filmes portugueses, que os actores pestanejam muito. Ora, durante o filme inteiro ele pestanejou uma única vez quando acendeu um cigarro. Tem sempre os olhos abertos, com as luzes dos holofotes ligados, ele aguentou aquilo tudo. É preciso uma concentração, uma dedicação fantásticas. Aliás, ele entrou tanto na personagem que teve problemas em sair.
Como assim?
Dias depois ainda parecia o Bernardo Soares, o cabelo, a barba. Ainda tinha os mesmos gestos, o mesmo olhar, a mesma atitude. Ele esteve muito tempo lá metido. Trabalhei muito com ele um mês antes de começar a filmar. O Bernardo Soares não podia estar metido no realismo, tinha de ser um personagem à parte, sem tiques, tinha de ser fluído. Ele foi magnífico.
A Lisboa do filme é a sua ou a do Bernardo Soares?
Espero que seja a dele, mas no fundo sei que é a minha. É a cidade que eu achava poder coincidir com o percurso do Bernardo Soares, um tipo que inventou as viagens todas sem nunca sair do mesmo lugar. O Bernardo Soares é uma tripe.
Cortesia de i
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