Nascido em 1906, contemporâneo dos poetas da presença, só em 1956 António Gedeão (1906-1997; pseudónimo de Rómulo de Carvalho, metodólogo de Ciências Físico-Químicas no ensino secundário, autor de trabalhos nos domínios da didáctica das disciplinas da sua especialidade, e da historiografia e divulgação científicas) publica o seu primeiro livro de poemas, Movimento Perpétuo. Entre esse ano e 1961 dará a público outras duas colectâneas, Teatro do Mundo, 1958, e Máquina de Fogo, tendo oportunidade logo em 1964 de reunir a sua produção poética nas Poesias Completas, acompanhadas de um importante e exaustivo estudo de Jorge de Sena, também ele homem de formação científica. Até aos princípios dos anos 90, as Poesias Completas, que a partir da 2ª edição, em 1968, passam a incluir Linhas de Força, de 1967, conhecerão uma dezena de edições, circunstância muito rara no panorama da edição poética portuguesa de Novecentos e que dá bem a medida da popularidade alcançada durante esse período pela obra de António Gedeão, que beneficiou igualmente da difusão que lhe foi dada por alguns nomes importantes da nossa música popular e de intervenção.
No momento em que António Gedeão se estreia como poeta (sublinhe-se que já então é autor de trabalhos didácticos ou de divulgação científica e que, como pode ver-se na edição da Obra Completa, de 2004, desde muito jovem escreve poemas), é muito forte entre os autores emergentes a consciência de fazerem parte de uma tradição moderna, que remonta aos tempos do Orpheu, ou mesmo a certas figuras-chave anteriores como Cesário, Nobre ou Pessanha. Jorge de Sena dirá que Gedeão realiza, na sua poesia, uma síntese das grandes conquistas do Modernismo, e, em certo sentido, poderá mesmo afirmar-se que ele é um dos primeiros a levá-las a um público mais alargado que a lírica moderna, com algumas das suas ousadias, ainda não fora capaz de aliciar. A par de uma original reelaboração do legado modernista, sem dificuldade se reconhece igualmente nos versos de António Gedeão um poeta identificado com o espírito do tempo que presidiu à sua estreia literária. Assim o vemos, numa época dominada pelas filosofias da existência, entregue ao «desespero», a um mal-estar que vem das zonas mais fundas e turvas da consciência de existir. Ou dando expressão aos seus receios perante a «bomba», a capacidade de auto-destruição do homem, em tempo de guerra fria. Esse pessimismo casa bem com a condição que é também a sua de herdeiro do cepticismo iluminista: «Os homens nascem maus./ Nós é que havemos de fazê-los bons.» Mas a herança do iluminismo permite-lhe, ao mesmo tempo, alimentar a confiança no homem: «Eu sou o homem. O Homem./ Desço ao mar e subo ao céu./ Não há temores que me domem./ É tudo meu, tudo meu.» Desse mesmo legado é possível aproximar, por outro lado, a sage ironia que o leva, em “Poema do fecho éclair”, a meter a ridículo o poder de um dos grandes do mundo por tudo possuir mas não conhecer um dos mais correntes artefactos do homem moderno, ou, em “Dia de Natal”, a fazer a denúncia do desenfreado consumismo próprio dessa quadra.
Numa fase da evolução da nossa lírica moderna em que já se verificara o alargamento dos domínios da poesia ao que era tido por não poético, uma das grandes novidades que os versos de António Gedeão trazem é a presença, muito marcada, neles da linguagem científica. Homem de ciência, ligado a conceitos e terminologias que preenchem quotidianamente a sua actividade, não separa, na sua poesia, Rómulo de Carvalho do seu alter ego literário António Gedeão. Pelo contrário, chega a fazê-los coexistir num mesmo texto, como acontece na famosa “Lição sobre a água”, em que o leitor colhe a impressão de que é o cientista que fala nas duas primeiras estrofes, para, na estrofe final, ceder a voz ao poeta. De outras vezes, à expressão da indignação do humanista, tantas vezes já gasta pela retórica do panfletarismo, prefere o poeta a austera eficácia da demonstração e da evidência científicas, como na antologiadíssima “Lágrima de preta”. A isto acresce o uso recorrente de termos científicos, respondendo a uma indeclinável necessidade gerada pelos próprios temas, sem que o poeta ponha de parte um dos grandes prazeres que a sua arte lhe reserva, o da nomeação, para o caso incidindo no que é a sua experiência interiorizada de todos os dias de homem de ciência. E aqui é a linguagem poética que se enriquece e as imagens e metáforas que ganham outro fulgor e novos modos de nos surpreender, numa decidida ampliação do campo expressivo, com o recurso a realidades evocadas por termos como, entre muitos outros, «protoplasma», «cisão do átomo», «neutrão», «colódio», «ácidos», «bases», «sais», «cloreto de sódio», «suspensão coloidal», «dissolvente», «aminoácido».
No plano da forma da expressão, é possível traçar uma linha evolutiva na poesia de Gedeão, entre o livro de estreia em meados dos anos 50 e a última colectânea, vinda a lume em 1990. Permitir-nos-á ela notar a predominância do metro regular nos livros publicados na década de 50, Movimento Perpétuo e Teatro do Mundo, a adopção de ritmos mais livres embora mantendo-se ainda o uso da rima nos volumes editados nos anos 60, Máquina de Fogo e Linhas de Força, e uma clara opção pelo verso livre não rimado nas duas últimas colectâneas, Poemas Póstumos, de 1983, e Novos Poemas Póstumos, de 1990. Nuns casos a forma escolhida aproxima-se das formas legadas pela tradição, que podem ser as que têm origem na poderosa tradição romancística, como se observa em “Cavalinho, cavalinho” e em “Ai Silvina, ai Silvininha”, ou as que entram num processo de interlocução com a tradição culta, trazendo à memória ora as Barcas vicentinas, em “Fala do homem nascido” ( «Minha barca aparelhada/ solta o pano rumo ao norte;/ meu desejo é passaporte/ para a fronteira fechada./ Não há ventos que não prestem/ nem marés que não convenham,/ nem forças que me molestem,/ correntes que me detenham» ), ora um dos mais glosados poemas de Camões em “Poema da auto-estrada”, aqui por via da distorção paródica ( «Voando vai para a praia/ Leonor na estrada preta./ Vai na brasa de lambreta.» ). Noutros casos, as suas opções formais aproximam-se, já no âmbito da tradição moderna, da combinação de diversos metros tão do agrado dos poetas da presença, ou, como é o caso, nos dois últimos livros, de modo mais nítido, do versilibrismo mais ou menos radical de que o Modernismo fez, em diferentes momentos, um dos seus mais apregoados instrumentos de libertação.
Registe-se ainda a incursão, em 1973, de António Gedeâo pela ficção narrativa em A Poltrona e Outras Novelas, e, em 1963 e 1981, pela literatura dramática, em RTX – 78/24 e História Breve da Lua, respectivamente, textos estes que podem ler-se, para além de um conjunto de ensaios literários, em Obra Completa , de 2004.
por Fernando J. B. Martinho
No momento em que António Gedeão se estreia como poeta (sublinhe-se que já então é autor de trabalhos didácticos ou de divulgação científica e que, como pode ver-se na edição da Obra Completa, de 2004, desde muito jovem escreve poemas), é muito forte entre os autores emergentes a consciência de fazerem parte de uma tradição moderna, que remonta aos tempos do Orpheu, ou mesmo a certas figuras-chave anteriores como Cesário, Nobre ou Pessanha. Jorge de Sena dirá que Gedeão realiza, na sua poesia, uma síntese das grandes conquistas do Modernismo, e, em certo sentido, poderá mesmo afirmar-se que ele é um dos primeiros a levá-las a um público mais alargado que a lírica moderna, com algumas das suas ousadias, ainda não fora capaz de aliciar. A par de uma original reelaboração do legado modernista, sem dificuldade se reconhece igualmente nos versos de António Gedeão um poeta identificado com o espírito do tempo que presidiu à sua estreia literária. Assim o vemos, numa época dominada pelas filosofias da existência, entregue ao «desespero», a um mal-estar que vem das zonas mais fundas e turvas da consciência de existir. Ou dando expressão aos seus receios perante a «bomba», a capacidade de auto-destruição do homem, em tempo de guerra fria. Esse pessimismo casa bem com a condição que é também a sua de herdeiro do cepticismo iluminista: «Os homens nascem maus./ Nós é que havemos de fazê-los bons.» Mas a herança do iluminismo permite-lhe, ao mesmo tempo, alimentar a confiança no homem: «Eu sou o homem. O Homem./ Desço ao mar e subo ao céu./ Não há temores que me domem./ É tudo meu, tudo meu.» Desse mesmo legado é possível aproximar, por outro lado, a sage ironia que o leva, em “Poema do fecho éclair”, a meter a ridículo o poder de um dos grandes do mundo por tudo possuir mas não conhecer um dos mais correntes artefactos do homem moderno, ou, em “Dia de Natal”, a fazer a denúncia do desenfreado consumismo próprio dessa quadra.
Numa fase da evolução da nossa lírica moderna em que já se verificara o alargamento dos domínios da poesia ao que era tido por não poético, uma das grandes novidades que os versos de António Gedeão trazem é a presença, muito marcada, neles da linguagem científica. Homem de ciência, ligado a conceitos e terminologias que preenchem quotidianamente a sua actividade, não separa, na sua poesia, Rómulo de Carvalho do seu alter ego literário António Gedeão. Pelo contrário, chega a fazê-los coexistir num mesmo texto, como acontece na famosa “Lição sobre a água”, em que o leitor colhe a impressão de que é o cientista que fala nas duas primeiras estrofes, para, na estrofe final, ceder a voz ao poeta. De outras vezes, à expressão da indignação do humanista, tantas vezes já gasta pela retórica do panfletarismo, prefere o poeta a austera eficácia da demonstração e da evidência científicas, como na antologiadíssima “Lágrima de preta”. A isto acresce o uso recorrente de termos científicos, respondendo a uma indeclinável necessidade gerada pelos próprios temas, sem que o poeta ponha de parte um dos grandes prazeres que a sua arte lhe reserva, o da nomeação, para o caso incidindo no que é a sua experiência interiorizada de todos os dias de homem de ciência. E aqui é a linguagem poética que se enriquece e as imagens e metáforas que ganham outro fulgor e novos modos de nos surpreender, numa decidida ampliação do campo expressivo, com o recurso a realidades evocadas por termos como, entre muitos outros, «protoplasma», «cisão do átomo», «neutrão», «colódio», «ácidos», «bases», «sais», «cloreto de sódio», «suspensão coloidal», «dissolvente», «aminoácido».
No plano da forma da expressão, é possível traçar uma linha evolutiva na poesia de Gedeão, entre o livro de estreia em meados dos anos 50 e a última colectânea, vinda a lume em 1990. Permitir-nos-á ela notar a predominância do metro regular nos livros publicados na década de 50, Movimento Perpétuo e Teatro do Mundo, a adopção de ritmos mais livres embora mantendo-se ainda o uso da rima nos volumes editados nos anos 60, Máquina de Fogo e Linhas de Força, e uma clara opção pelo verso livre não rimado nas duas últimas colectâneas, Poemas Póstumos, de 1983, e Novos Poemas Póstumos, de 1990. Nuns casos a forma escolhida aproxima-se das formas legadas pela tradição, que podem ser as que têm origem na poderosa tradição romancística, como se observa em “Cavalinho, cavalinho” e em “Ai Silvina, ai Silvininha”, ou as que entram num processo de interlocução com a tradição culta, trazendo à memória ora as Barcas vicentinas, em “Fala do homem nascido” ( «Minha barca aparelhada/ solta o pano rumo ao norte;/ meu desejo é passaporte/ para a fronteira fechada./ Não há ventos que não prestem/ nem marés que não convenham,/ nem forças que me molestem,/ correntes que me detenham» ), ora um dos mais glosados poemas de Camões em “Poema da auto-estrada”, aqui por via da distorção paródica ( «Voando vai para a praia/ Leonor na estrada preta./ Vai na brasa de lambreta.» ). Noutros casos, as suas opções formais aproximam-se, já no âmbito da tradição moderna, da combinação de diversos metros tão do agrado dos poetas da presença, ou, como é o caso, nos dois últimos livros, de modo mais nítido, do versilibrismo mais ou menos radical de que o Modernismo fez, em diferentes momentos, um dos seus mais apregoados instrumentos de libertação.
Registe-se ainda a incursão, em 1973, de António Gedeâo pela ficção narrativa em A Poltrona e Outras Novelas, e, em 1963 e 1981, pela literatura dramática, em RTX – 78/24 e História Breve da Lua, respectivamente, textos estes que podem ler-se, para além de um conjunto de ensaios literários, em Obra Completa , de 2004.
por Fernando J. B. Martinho
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