O poeta Edgar Carneiro faleceu recentemente, aos 97 anos, em Vila Nova de Gaia. Em Março do ano passado, o JL traçou-lhe o perfil que aqui o blog Poetícia partilha:
Aos 96 anos acaba de publicar o seu 13.º livro de poemas. Périplo, uma edição da Húmus. "É o amor pela poesia que motiva todos os meus livros", conta ao JL, Edgar Carneiro, poeta e professor que desde os 14 anos se apaixonou pela arte poética. Apesar de se confessar "um pouco cansado", já pensa na antologia da sua obra
Fala com a voz pausada como se pensasse muito bem cada palavra antes de a pronunciar. Mas o seu discurso está longe de ser maçudo. Aos poucos, numa longa conversa, desfia as histórias da sua vida, indissociável da poesia que desde sempre o acompanhou. "As palavras têm que ser a alma do poema", assegura Edgar Carneiro. "Toda a gente pode fazer versos, mas nem todas fazem poesia. Um poema tem sempre uma mensagem do escritor, mas tem que ser dada com beleza. As palavras precisam ser capazes de ultrapassar o significado banal dos termos", explica. Foi, como sempre, "o amor pela poesia" que motivou este novo volume. Escreveu-o sem pretextos, nem ideias de resumo de vida. "Chamei-lhe Périplo como poderia ter-lhe chamado outra coisa. Anda tudo à volta das minhas ideias do que é esta arte", afirma. Tem, desde os tempos da instrução primária, um dicionário pequenino por onde se habituou a procurar significados. Ali pode ler-se que "a poesia é a arte de escrever em verso". Há algum tempo, comprou o Dicionário da Academia de Ciências onde poesia se descreve como "a arte de escrever utilizando a metáfora". Edgar Carneiro procura conciliar as duas definições: "Toda a minha poesia é muito musical, conserva o ritmo, e tento harmonizar a tradição com a modernidade, utilizando muito a metáfora como forma de expressão".Nascido em Chaves, a 12 de Maio de 1913, o poeta recorda a infância passada numa família grande - eram quatro irmãos - na exploração agrícola do pai, perto da aldeia de Faiões. "Lembro-me tão bem das corridas que fazia com os meus irmãos e de como brilhava o sol ao cair da tarde nos campos cultivados". Fez a instrução primária, o primeiro e o segundo ciclo no Colégio de Lamego. Foi aí que, aos 14 anos, conheceu o professor de Português que lhe mudou a vida. Chamava-se Luís Osório e "era um leitor primoroso". O adolescente Edgar lembra-se de ficar horas a ouvi-lo ler Luís de Camões: "Escutava-o como quem escuta Deus. Fiquei preso à poesia desde então". Nessa turma, contrariamente ao que era costume na época, a leitura de Os Lusíadas não era feita para medir e dividir as orações, mas antes para, em conjunto, chegarem ao "valor intrínseco da obra". Depois de cada Canto o professor pedia aos alunos que escrevessem bocadinhos em prosa ou verso que explicassem a leitura. Edgar não era excepção e foi então que descobriu "um certo jeitinho, um bichinho", que Luís Osório ajudou a desenvolver. "Jamais esquecerei este professor", refere. Desde então (corria o ano de 1927) nunca mais parou de escrever.
"Nasci para ser professor"
Não deixa de ser curioso que com tanta escrita só tenha publicado o primeiro livro - Poemas Transmontanos - em 1978. A verdade é que teria pouco mais de 20 quando editou Caminhos de Fogo renegando-o algum tempo depois. Processo idêntico ao do seu grande amigo Adolfo Rocha com o volume A Rampa. "Conhecia o Miguel Torga como à palma da minha mão. A malta costumava gozá-lo dizendo que à Rampa faltava um 'T' no início, para abarcar o verdadeiro espírito da obra", recorda, entre risos. Sobre Caminhos de Fogo recebeu a crítica de Alice Ogando: "Se este livro fosse um bocadinho mais magro, era uma revelação". Edgar Carneiro reconheceu que tinha ali posto poemas a mais e que era necessária uma revisão cuidada mas, como recorda sem saudosismos: "Era o tempo da juventude, a vaidade dos 20 anos, e publicar era fundamental". Apesar de ter esquecido esse primeiro livro não parou de escrever. Entretanto tinha feito o 6.º e 7.º ano (actuais 10.º e 11.º anos) no Liceu de Vila Real onde conheceu "a sua namorada" com quem casou alguns anos depois. Seguiu para a Universidade de Coimbra onde se formou em Ciências Histórico-Filosóficas, com média de 15 valores. Foi depois dar aulas para a Escola Industrial e Comercial Júlio Martins, em Chaves, onde ficou durante alguns anos. Às tantas, a conselho de um colega, resolveu candidatar-se ao Exame de Estado para poder ser colocado numa escola com lugar de efectivo. Passou com boa nota e foi colocado numa escola de Vila Nova de Gaia. Lá chegado soube, pela boca do director, que não ia ter horário. "Eu ia caindo", recorda. Mas o director logo lhe conseguiu uma vaga na Escola Oliveira Martins, no Porto, cidade para onde rumaria já com a mulher e o seu único filho - Eduardo. Moravam perto do Jardim de São Lázaro e certo dia enquanto a criança brincava no jardim, Edgar Carneiro chamou o filho para vir almoçar. Ouviu o chiar de um carro e pensou que Eduardo ficara debaixo do veículo. Não passou de um susto, mas o jovem pai não quis esperar por outro. A família sairia do Porto regressando a Vila Real, onde deu aulas durante vários anos."Nasci para ser professor", afirma. Deu aulas de Português. Geografia, História e também de Organização Política da Nação. "Era uma disciplina que toda a gente odiava, mas dada por mim, até tinha sucesso", recorda com certo orgulho na voz. Aliás, sempre que encontra um antigo aluno na rua é uma festa. "Não é para me gabar, mas sempre me dei muito bem com os meus estudantes".
Cravos em forma de poema
No fim dos anos 60, foi convidado para dirigir a Escola Secundária D. Pedro V, em Fiães, no concelho de Santa Maria da Feira, perto de Espinho. "Tive carta branca e fiz de tudo um pouco, desde a escolha do mobiliário, à contratação dos professores. Isto passava-se já no tempo do Marcelo Caetano e a escola florescia". Entretanto Edgar Carneiro publicou alguns poemas em jornais, como por exemplo, O Primeiro de Janeiro, onde então trabalhava o seu filho Eduardo que viria a falecer alguns anos depois. Foi o caso do poema Laranjas e de outro, de que Edgar Carneiro não se recorda do título, que terminava assim: "Ouvirei sempre o grito dos cravos na boca vermelha".Na escola que dirigia leccionavam duas professoras comunistas e, pouco depois do 25 de Abril, gritavam palavras de ordem no sentido de expulsar o director. Até que alguém trouxe à baila o dito poema, gerando como resposta quase imediata, a calma das professoras: "Este é cá dos nossos! Pode ficar na escola". Quanto ao cravo, o poeta só vê duas hipóteses: "Ou eu adivinhei que seria a flor da revolução ou alguém se lembrou do meu poema para pôr os cravos nas espingardas".Na década de 80 publicou uma série de livros: Tempo de Guerra (1980), A Faca no Pão (1981), Jogos de Amar (1983), Rosa Pedra (1985) e O Signo e a Sina (1989). Seguir-se-iam outros como Vida Plena, A Boca na Fonte ou Lúdica, já em 2000. Espinho tornou-se a sua cidade e foi ali que deu aulas até aos 70 anos, quando se reformou em 1983. A energia vem-lhe, diz, "do sangue da mãe" que morreu com 99 anos. E embora hoje se sinta um pouco cansado, ainda gostava de fazer uma antologia dos seus poemas. O lançamento de Périplo em Espinho "foi um verdadeiro acontecimento" e foi convidado para repeti-lo em Chaves. "Era bonito lança-lo na minha cidade natal. Talvez seja o meu último acto poético". Apesar deste anúncio, um dos poemas de Périplo parece não o confirmar: "Eu canto a pedra dura/ o barro espesso/ o veio da madeira/ e a mão que construiu a casa erguida/ onde entra o claro sol/ a noite escura/ a voz responde à voz/ solícita ou carente/ e a formiguinha errante/ em sua pequenez/ é um sinal de vida.
Cortesia de Jornal de Letras Artes Ideias
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