“Mandacaru”, livro de poemas inéditos, foi encontrado no espólio de Rachel de Queiroz. No ano do centenário do nascimento da escritora brasileira, o Instituto Moreira Salles lança a edição fac-similada deste manuscrito, escrito aos 17 anos.
Mesmo antes de começar a ser feita a purga dos papéis do Fundo Rachel de Queiroz, que pertence aos arquivos literários do Instituto Moreira Salles (IMS), Brasil, Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura deste instituto, e o consultor literário, poeta e professor universitário Eucanaã Ferraz começaram a abrir as caixas com o espólio da escritora brasileira e a “pinçar textos”.
Descobriram então -entre os cinco mil livros e documentos -uma colectânea de poemas manuscritos intitulada “Mandacaru”. São dez poemas de juventude da primeira mulher a entrar para Academia Brasileira de Letras, em 1977, e também a primeira a receber, em 1993, o Prémio Camões.
Nessa obra inédita, Rachel de Queiroz (que nasceu a 17 de Novembro de 1910, em Fortaleza, no Ceará, e morreu no dia 4 de Novembro de 2003, no Rio) já abordava temas e personagens (algumas da mitologia cearense) que apareceram posteriormente nos seus romances, crónicas e peças de teatro: a seca, o êxodo, a fome, o sol escaldante, e também “a cabocla que faz renda no alpendre sentada no chão”, o Lampião, líder de cangaço, “que cabra valente que ele é”, ou D. Bárbara de Alencar, que lutou ao lado dos filhos na Confederação do Equador, em 1824.
Na sequência dessa descoberta, “Mandacaru” foi publicado pelo IMS em Novembro, numa edição fac-similada que reproduz os manuscritos e tem organização de Elvia Bezerra, para comemorar os 100 anos do nascimento da autora de “Memorial de Maria Moura”. Ao lado de outras iniciativas, como a exposição “Rachel de Queiroz Centenária”, que pode ser vista na sede do Instituto, no Rio, até 16 de Janeiro. Ali se mostram alguns dos originais que pertencem ao acervo da escritora: fotografias, projectos de capas, programas de peças de teatro, caricaturas, manuscritos e objectos nunca antes expostos, como as ilustrações originais que abriam cada capítulo do romance “O Galo de Ouro”, datadas de 1951.
Uma garota assim…
Os poemas de “Mandacaru” foram escritos em 1928, quando a autora tinha 17 anos, dois anos antes da publicação de “O Quinze”, o romance de estreia (em Portugal foi editado pela Difel) que levou o escritor Graciliano Ramos a achar que Rachel de Queiroz devia ser um pseudónimo de “sujeito barbado”: “‘Uma garota assim fazer romance!’, duvidou, e concluiu por conta própria: ‘É homem.’”, como explica Elvia Bezerra na apresentação que faz da obra no “site” do IMS.
Mário de Andrade, na crítica a “O Quinze” (1930), que retratava a seca que devastou o Nordeste em 1915, dizia mal do prefácio onde estranhava a versalhada. “Prefácio e verso são literatice mas da gorda. (…) O que surpreende mais é justamente isso: tanta literatice inicial se soverter de repente, e a moça vir saindo com um livro humano, uma seca de verdade, sem exagero, sem sonoridade, uma seca seca, pura, detestável, medonha (…)”, escrevia o autor de “Macunaíma”. Nesse prefácio, Rachel de Queiroz citava alguns dos versos de “Mandacaru” e tentava aproximar-se dos modernistas: “Mandacaru é um dos balbucios com que nós, os do Nordeste, tentamos colaborar na grande harmonia nacional que vocês executam”.
No texto introdutório que abre esta edição, “Nata e Flor do Nosso Povo”, a organizadora afirma: “Mais de uma vez, Rachel de Queiroz mostrou desprezo pela preservação de seus originais ou de inéditos. Não fosse a dedicação da amiga Alba Frota, que inspirou a personagem Maria José no romance ‘As Três Marias’, seria bem minguado o arquivo da escritora”. Foi a Alba que a escritora doou, em 1928, os originais manuscritos de “Mandacaru”.
A amiga de Rachel de Queiroz era chefe do Serviço de Documentação da Universidade Federal do Ceará e queria escrever uma biobibliografia comentada da escritora, por isso guardou a produção literária da amiga durante anos. Mas viria a morrer num acidente de avião, em 1967, quando voltava de Não Me Deixes, a fazenda de Rachel em Quixadá, no sertão, e não pôde concretizar o projecto.
Dos dez poemas -”Nheengarêçaua”, “D. Bárbara de Alencar”, “O êxodo”, “O acre”, “Nascimento”, “Cedro”, “Orós”, “Meu Padrinho”, “Lampião” e “Renda da terra” -agora editados, quatro já tinham sido publicados em jornais e revistas. No espólio depositado no IMS existe ainda um recorte do jornal “O Ceará”, de 5 de Setembro de 1928, onde se dava a notícia de que “a jovem e brilhante poetisa” tinha lido poemas de “Mandacaru”, livro que tinha intenção de publicar proximamente. Do Fundo Rachel de Queiroz fazem também parte recortes que a mãe, Clotilde de Queiroz, fez dos primeiros artigos da filha e uma versão dactilografada dos poemas, datada de 1958, que leva a pensar que nesse ano se terá voltado a tentar publicar estes inéditos.
“Mandacaru” pode ser comprado em http://ims.uol.com.br/Mandacaru/ D534) e custa 16 euros.
Por Isabel Coutinho
Cortesia de O Público
Mesmo antes de começar a ser feita a purga dos papéis do Fundo Rachel de Queiroz, que pertence aos arquivos literários do Instituto Moreira Salles (IMS), Brasil, Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura deste instituto, e o consultor literário, poeta e professor universitário Eucanaã Ferraz começaram a abrir as caixas com o espólio da escritora brasileira e a “pinçar textos”.
Descobriram então -entre os cinco mil livros e documentos -uma colectânea de poemas manuscritos intitulada “Mandacaru”. São dez poemas de juventude da primeira mulher a entrar para Academia Brasileira de Letras, em 1977, e também a primeira a receber, em 1993, o Prémio Camões.
Nessa obra inédita, Rachel de Queiroz (que nasceu a 17 de Novembro de 1910, em Fortaleza, no Ceará, e morreu no dia 4 de Novembro de 2003, no Rio) já abordava temas e personagens (algumas da mitologia cearense) que apareceram posteriormente nos seus romances, crónicas e peças de teatro: a seca, o êxodo, a fome, o sol escaldante, e também “a cabocla que faz renda no alpendre sentada no chão”, o Lampião, líder de cangaço, “que cabra valente que ele é”, ou D. Bárbara de Alencar, que lutou ao lado dos filhos na Confederação do Equador, em 1824.
Na sequência dessa descoberta, “Mandacaru” foi publicado pelo IMS em Novembro, numa edição fac-similada que reproduz os manuscritos e tem organização de Elvia Bezerra, para comemorar os 100 anos do nascimento da autora de “Memorial de Maria Moura”. Ao lado de outras iniciativas, como a exposição “Rachel de Queiroz Centenária”, que pode ser vista na sede do Instituto, no Rio, até 16 de Janeiro. Ali se mostram alguns dos originais que pertencem ao acervo da escritora: fotografias, projectos de capas, programas de peças de teatro, caricaturas, manuscritos e objectos nunca antes expostos, como as ilustrações originais que abriam cada capítulo do romance “O Galo de Ouro”, datadas de 1951.
Uma garota assim…
Os poemas de “Mandacaru” foram escritos em 1928, quando a autora tinha 17 anos, dois anos antes da publicação de “O Quinze”, o romance de estreia (em Portugal foi editado pela Difel) que levou o escritor Graciliano Ramos a achar que Rachel de Queiroz devia ser um pseudónimo de “sujeito barbado”: “‘Uma garota assim fazer romance!’, duvidou, e concluiu por conta própria: ‘É homem.’”, como explica Elvia Bezerra na apresentação que faz da obra no “site” do IMS.
Mário de Andrade, na crítica a “O Quinze” (1930), que retratava a seca que devastou o Nordeste em 1915, dizia mal do prefácio onde estranhava a versalhada. “Prefácio e verso são literatice mas da gorda. (…) O que surpreende mais é justamente isso: tanta literatice inicial se soverter de repente, e a moça vir saindo com um livro humano, uma seca de verdade, sem exagero, sem sonoridade, uma seca seca, pura, detestável, medonha (…)”, escrevia o autor de “Macunaíma”. Nesse prefácio, Rachel de Queiroz citava alguns dos versos de “Mandacaru” e tentava aproximar-se dos modernistas: “Mandacaru é um dos balbucios com que nós, os do Nordeste, tentamos colaborar na grande harmonia nacional que vocês executam”.
No texto introdutório que abre esta edição, “Nata e Flor do Nosso Povo”, a organizadora afirma: “Mais de uma vez, Rachel de Queiroz mostrou desprezo pela preservação de seus originais ou de inéditos. Não fosse a dedicação da amiga Alba Frota, que inspirou a personagem Maria José no romance ‘As Três Marias’, seria bem minguado o arquivo da escritora”. Foi a Alba que a escritora doou, em 1928, os originais manuscritos de “Mandacaru”.
A amiga de Rachel de Queiroz era chefe do Serviço de Documentação da Universidade Federal do Ceará e queria escrever uma biobibliografia comentada da escritora, por isso guardou a produção literária da amiga durante anos. Mas viria a morrer num acidente de avião, em 1967, quando voltava de Não Me Deixes, a fazenda de Rachel em Quixadá, no sertão, e não pôde concretizar o projecto.
Dos dez poemas -”Nheengarêçaua”, “D. Bárbara de Alencar”, “O êxodo”, “O acre”, “Nascimento”, “Cedro”, “Orós”, “Meu Padrinho”, “Lampião” e “Renda da terra” -agora editados, quatro já tinham sido publicados em jornais e revistas. No espólio depositado no IMS existe ainda um recorte do jornal “O Ceará”, de 5 de Setembro de 1928, onde se dava a notícia de que “a jovem e brilhante poetisa” tinha lido poemas de “Mandacaru”, livro que tinha intenção de publicar proximamente. Do Fundo Rachel de Queiroz fazem também parte recortes que a mãe, Clotilde de Queiroz, fez dos primeiros artigos da filha e uma versão dactilografada dos poemas, datada de 1958, que leva a pensar que nesse ano se terá voltado a tentar publicar estes inéditos.
“Mandacaru” pode ser comprado em http://ims.uol.com.br/Mandacaru/ D534) e custa 16 euros.
Por Isabel Coutinho
Cortesia de O Público
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