Carlito Azevedo deu-se ao luxo de ser anarquista na primeira volta, mas domingo vai votar. Porque quem não quer dividir com os pobres merece perder.
O centro do Rio de Janeiro é um mistério. Por exemplo, hoje, sol-sol depois de tanta chuva. Casarões brancos com pedra de cantaria, casas vermelhas ou cor-de-mostarda com janelas em arco, varandas, varandins, candeeiros de ferro forjado, ao fundo uma igreja, um arco, as barcas na baía. Mas da cintura para cima toda esta maravilha está desabitada, ou feita armazém, grafitada, tapada. Muita gente cá trabalha mas ninguém cá dorme. Enquanto isso, na Zona Sul, as pessoas esgadanham-se por apartamentos mínimos, caríssimos.
Carlito de Azevedo levanta a cabeça para a bela fachada sem vidros, paredes negras por dentro, ao lado do café-sebo Al-Farabi. Acordou optimista: "O centro está mudando. Antes não tinha aquela placa a dizer "Vende-se."" E aponta o airoso boteco ao lado: "Era um boteco muito vagabundo." Agora nas mãos do "cheff Santos", um português, deu uma cor na rua. O centro vai dar a volta, acha Carlito. "Só é preciso que dê a volta com a gente certa, não com os chatos, os shoppings..." Plano bom era juntar amigos e comprar um prédio. "A gente ocupava isso aí..."
Sebo é alfarrabista, portanto no café Al-Farabi tem livros antigos. Fica na Rua do Rosário, e daqui à Rua do Ouvidor, toda pedonal, são dois passos. "Esta é a rua que mais se encontra em romance do século XIX. Era onde se sabiam as novidades. O Machado de Assis estava sempre passando."
Poeta, editor e grande leitor, Carlito de Azevedo, 48 anos, veio de barca esta manhã, da Ilha do Governador, onde mora, mas conhece o centro de muito andar, além dos livros. Fazendo um cotovelo, mete pela Rua do Arco do Telles, porque quer mostrar uma casa. Ficamos de queixo levantado a olhar para as janelas fechadas, a porta romba, presa com uma trave. "A Carmen Miranda morava aqui."
O arco dá para a Praça XV de Novembro. "Ali é o Paço Imperial, a casinha da família real vossa. Agora é um centro cultural e tem lá uma exposição de Hélio Oiticica." Bom futuro para a queda da monarquia.
No porto das barcas, vê-se a Ilha Fiscal, uma fiada de casas com um palacete neogótico que a uma visitante francesa já pareceu coisa da Disney. "Ali foi o último baile do império." O aeroporto está logo ao lado e um avião vem a pousar, como se fosse na água.
"Olha a distância a que passou da barca..." Por cima da cabeça. O sol queima, finalmente.
Briga geral
Sendo hora de almoço, Carlito propõe uma salada no café do Paço. Como editor, acaba de publicar a poesia reunida de Chacal, um símbolo da poesia marginal carioca, anos 70, e conta isto: "O Chacal diz que a diferença entre o Rio e São Paulo é que em São Paulo você lê mas não discute e no Rio você discute mas não lê. Aqui, você encontra alguém, o livro mudou a vida dele, mas o cara não leu. Em São Paulo o cara leu mas isso não mudou nada!"
É uma das conversas favoritas no eixo Rio-São Paulo, a comparação entre as duas cidades. Politicamente, neste momento, isso significa que São Paulo alinha por Serra e o Rio por Dilma.
E o momento é de briga. Amigos que se insultam pelo Facebook e no Twitter. Até como antes, ao vivo. "Quando começa o jantar, não vamos falar de política. E quando você vê, está todo o mundo discutindo." Um conhecido de Carlito acabou de pé no meio do restaurante a declarar: "Prefiro votar numa mulher que venceu um cancro do que em sujeito que vai fazer tomografia por causa de uma bolinha de papel!"
Dilma teve cancro, e Serra fez um TAC depois de levar com um rolo de autocolantes, aquilo a que todos chamam bolinha de papel. "E ainda bem que não era de sabão, senão iam dizer que era arma química!", rematou o conhecido de Carlito.
Assim vai a discussão, a dois dias do voto.
Mas Carlito não discute. "A minha desilusão é mais profunda. Eu peguei o final da ditadura. Para mim, uma eleição disputada entre PT e PSDB é um sonho. Mas é com pessoas concretas. Então o nosso encontro com o sonho dá-se em forma de colisão."
Por isso, na primeira volta Carlito votou nulo. Os brasileiros dizem anular o voto. "Todo o mundo diz que é uma inutilidade anular, mas tem um restinho de anarquista em mim. Uma eleição sem voto nulo é prémio para quem não merece. Então na primeira volta houve essa percentagem dizendo: "Nenhum de vocês. E não desse jeito.""
Mas agora Carlito vai votar Dilma. O que é que aconteceu? "Tudo o que li na Internet convencendo-me a não votar na Dilma acabou me levando a votar na Dilma."
O boom da Net
Esta é a primeira eleição em que a Internet está tão presente. "Não existe favela sem LAN House, uma salinha com um monte de computadores. O que você falava no seu quarto passa a ter repercussão mundial. A truculência está ali, não nos debates da televisão."
Coisas como um vídeo no YouTube em que um rapaz canta a música Aborte a Dilma. Tem versos como "O presidente Lula acha que manda no povão/ para enfiar essa merda goela abaixo da nação", "Eu vou abortar a Dilma no dia da eleição /Vou-te abortar/ de uma vez." Ao lado há links para vídeos como Dilma Roussef Bruxeff confessa aborto em 2007 e Dilma confessa: sou abortista sim. Ou o vídeo em que um homem anuncia que tem o áudio com as sessões em que Dilma foi torturada e denunciou gente. "Eu acho que as pessoas que fazem isso merecem essa contrariedade de ver a Dilma Presidente", diz Carlito.
O poeta zangou-se com "a forma desrespeitosa" como Dilma é tratada, incluindo Serra. "Duvido que o Serra falasse assim com o Lula ou com Collor. Tem um lado bem machista brasileiro. Acho que ele considera que perder para uma mulher seria mais grave do que para um homem. No primeiro turno pude dar-me ao luxo de ser anarquista, mas agora, notando que o inimigo é capaz de tanta coisa, a gente faz uma frente popular. As pessoas que criam esse terror merecem perder. Essas pessoas que ficam horrorizadas de ir no aeroporto e ver gente que antes não andava de avião. Essas pessoas estão muito chateadas por ter de dividir."
Carlito está longe de satisfeito com o PT: "As alianças do PT são horríveis. O recuo do PT para fazer aliança com a Igreja é horrível." Mas o outro lado é pior. "Este país em dado momento colidiu com a possibilidade de riqueza sem estar preparado." Tal como sonho quando se torna concreto. O sonho agora é uma colisão.
E tem mais: "Nós somos os tardios. A gente chega no momento do planeta esgotado, com seis mil milhões que em breve serão dez mil milhões. Se cada chinês consumisse o que consome um americano médio, os recursos do planeta iam acabar em seis meses."
Então, o que preferimos, deixar centenas de milhões a comerem só arroz, ou igualdade para todos e acabar com o planeta? "Prefiro gastar os recursos do que os pobres continuarem pobres. A grande arte de viver vai ser dizer não a 99 por cento das possibilidades para ficar com o que realmente interessa." Serra, diz Carlito, representa ficar com a opção mais rentável. "Lula e Dilma, apesar de tudo, representam escolhas que vão além disso."
Mas Lula e Dilma não são a mesma coisa.
"No Lula tinha uma ideia de felicidade e não vejo a Dilma ligada a uma ideia de felicidade", diz Carlito. "O Serra ataca: "Ela não vai dar conta." A Dilma responde: "Eu vou dar conta." Mas o Lula não ficava respondendo. Com o Lula era: "As pessoas vão ser mais felizes.""
Cortesia de O Público
O centro do Rio de Janeiro é um mistério. Por exemplo, hoje, sol-sol depois de tanta chuva. Casarões brancos com pedra de cantaria, casas vermelhas ou cor-de-mostarda com janelas em arco, varandas, varandins, candeeiros de ferro forjado, ao fundo uma igreja, um arco, as barcas na baía. Mas da cintura para cima toda esta maravilha está desabitada, ou feita armazém, grafitada, tapada. Muita gente cá trabalha mas ninguém cá dorme. Enquanto isso, na Zona Sul, as pessoas esgadanham-se por apartamentos mínimos, caríssimos.
Carlito de Azevedo levanta a cabeça para a bela fachada sem vidros, paredes negras por dentro, ao lado do café-sebo Al-Farabi. Acordou optimista: "O centro está mudando. Antes não tinha aquela placa a dizer "Vende-se."" E aponta o airoso boteco ao lado: "Era um boteco muito vagabundo." Agora nas mãos do "cheff Santos", um português, deu uma cor na rua. O centro vai dar a volta, acha Carlito. "Só é preciso que dê a volta com a gente certa, não com os chatos, os shoppings..." Plano bom era juntar amigos e comprar um prédio. "A gente ocupava isso aí..."
Sebo é alfarrabista, portanto no café Al-Farabi tem livros antigos. Fica na Rua do Rosário, e daqui à Rua do Ouvidor, toda pedonal, são dois passos. "Esta é a rua que mais se encontra em romance do século XIX. Era onde se sabiam as novidades. O Machado de Assis estava sempre passando."
Poeta, editor e grande leitor, Carlito de Azevedo, 48 anos, veio de barca esta manhã, da Ilha do Governador, onde mora, mas conhece o centro de muito andar, além dos livros. Fazendo um cotovelo, mete pela Rua do Arco do Telles, porque quer mostrar uma casa. Ficamos de queixo levantado a olhar para as janelas fechadas, a porta romba, presa com uma trave. "A Carmen Miranda morava aqui."
O arco dá para a Praça XV de Novembro. "Ali é o Paço Imperial, a casinha da família real vossa. Agora é um centro cultural e tem lá uma exposição de Hélio Oiticica." Bom futuro para a queda da monarquia.
No porto das barcas, vê-se a Ilha Fiscal, uma fiada de casas com um palacete neogótico que a uma visitante francesa já pareceu coisa da Disney. "Ali foi o último baile do império." O aeroporto está logo ao lado e um avião vem a pousar, como se fosse na água.
"Olha a distância a que passou da barca..." Por cima da cabeça. O sol queima, finalmente.
Briga geral
Sendo hora de almoço, Carlito propõe uma salada no café do Paço. Como editor, acaba de publicar a poesia reunida de Chacal, um símbolo da poesia marginal carioca, anos 70, e conta isto: "O Chacal diz que a diferença entre o Rio e São Paulo é que em São Paulo você lê mas não discute e no Rio você discute mas não lê. Aqui, você encontra alguém, o livro mudou a vida dele, mas o cara não leu. Em São Paulo o cara leu mas isso não mudou nada!"
É uma das conversas favoritas no eixo Rio-São Paulo, a comparação entre as duas cidades. Politicamente, neste momento, isso significa que São Paulo alinha por Serra e o Rio por Dilma.
E o momento é de briga. Amigos que se insultam pelo Facebook e no Twitter. Até como antes, ao vivo. "Quando começa o jantar, não vamos falar de política. E quando você vê, está todo o mundo discutindo." Um conhecido de Carlito acabou de pé no meio do restaurante a declarar: "Prefiro votar numa mulher que venceu um cancro do que em sujeito que vai fazer tomografia por causa de uma bolinha de papel!"
Dilma teve cancro, e Serra fez um TAC depois de levar com um rolo de autocolantes, aquilo a que todos chamam bolinha de papel. "E ainda bem que não era de sabão, senão iam dizer que era arma química!", rematou o conhecido de Carlito.
Assim vai a discussão, a dois dias do voto.
Mas Carlito não discute. "A minha desilusão é mais profunda. Eu peguei o final da ditadura. Para mim, uma eleição disputada entre PT e PSDB é um sonho. Mas é com pessoas concretas. Então o nosso encontro com o sonho dá-se em forma de colisão."
Por isso, na primeira volta Carlito votou nulo. Os brasileiros dizem anular o voto. "Todo o mundo diz que é uma inutilidade anular, mas tem um restinho de anarquista em mim. Uma eleição sem voto nulo é prémio para quem não merece. Então na primeira volta houve essa percentagem dizendo: "Nenhum de vocês. E não desse jeito.""
Mas agora Carlito vai votar Dilma. O que é que aconteceu? "Tudo o que li na Internet convencendo-me a não votar na Dilma acabou me levando a votar na Dilma."
O boom da Net
Esta é a primeira eleição em que a Internet está tão presente. "Não existe favela sem LAN House, uma salinha com um monte de computadores. O que você falava no seu quarto passa a ter repercussão mundial. A truculência está ali, não nos debates da televisão."
Coisas como um vídeo no YouTube em que um rapaz canta a música Aborte a Dilma. Tem versos como "O presidente Lula acha que manda no povão/ para enfiar essa merda goela abaixo da nação", "Eu vou abortar a Dilma no dia da eleição /Vou-te abortar/ de uma vez." Ao lado há links para vídeos como Dilma Roussef Bruxeff confessa aborto em 2007 e Dilma confessa: sou abortista sim. Ou o vídeo em que um homem anuncia que tem o áudio com as sessões em que Dilma foi torturada e denunciou gente. "Eu acho que as pessoas que fazem isso merecem essa contrariedade de ver a Dilma Presidente", diz Carlito.
O poeta zangou-se com "a forma desrespeitosa" como Dilma é tratada, incluindo Serra. "Duvido que o Serra falasse assim com o Lula ou com Collor. Tem um lado bem machista brasileiro. Acho que ele considera que perder para uma mulher seria mais grave do que para um homem. No primeiro turno pude dar-me ao luxo de ser anarquista, mas agora, notando que o inimigo é capaz de tanta coisa, a gente faz uma frente popular. As pessoas que criam esse terror merecem perder. Essas pessoas que ficam horrorizadas de ir no aeroporto e ver gente que antes não andava de avião. Essas pessoas estão muito chateadas por ter de dividir."
Carlito está longe de satisfeito com o PT: "As alianças do PT são horríveis. O recuo do PT para fazer aliança com a Igreja é horrível." Mas o outro lado é pior. "Este país em dado momento colidiu com a possibilidade de riqueza sem estar preparado." Tal como sonho quando se torna concreto. O sonho agora é uma colisão.
E tem mais: "Nós somos os tardios. A gente chega no momento do planeta esgotado, com seis mil milhões que em breve serão dez mil milhões. Se cada chinês consumisse o que consome um americano médio, os recursos do planeta iam acabar em seis meses."
Então, o que preferimos, deixar centenas de milhões a comerem só arroz, ou igualdade para todos e acabar com o planeta? "Prefiro gastar os recursos do que os pobres continuarem pobres. A grande arte de viver vai ser dizer não a 99 por cento das possibilidades para ficar com o que realmente interessa." Serra, diz Carlito, representa ficar com a opção mais rentável. "Lula e Dilma, apesar de tudo, representam escolhas que vão além disso."
Mas Lula e Dilma não são a mesma coisa.
"No Lula tinha uma ideia de felicidade e não vejo a Dilma ligada a uma ideia de felicidade", diz Carlito. "O Serra ataca: "Ela não vai dar conta." A Dilma responde: "Eu vou dar conta." Mas o Lula não ficava respondendo. Com o Lula era: "As pessoas vão ser mais felizes.""
Cortesia de O Público
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