POEMAS
Inventário de Lugares Propícios ao Amor
São poucos.
A primavera tem muito prestígio, mas
é melhor o verão.
E também essas frestas que o outono
forma quando interfere com os domingos
em algumas cidades
já de si amarelas como bananas.
O inverno elimina muitos sítios:
gonzos de portas orientadas a norte,
margens de rios,
bancos de jardins.
Os contrafortes exteriores
das velhas igrejas
deixam às vezes vãos
a utilizar, ainda que a neve caia.
Mas desenganemo-nos: as baixas
temperaturas e os ventos húmidos
dificultam tudo.
As leis, além do mais, proíbem
as carícias (à excepção
de determinadas zonas epidérmicas
sem qualquer interesse -
em crianças, cães e outros animais)
e "não tocar, perigo de ignomínia"
pode ler-se em milhares de olhares.
Para onde fugir, então?
Por todo o lado olhos de viés,
córneas torturadas,
implacáveis pupilas,
retinas reticentes,
vigiam, desconfiam, ameaçam.
Resta talvez o recurso de andar sozinho,
de esvaziar a alma de ternura
e enchê-la de fastio e indiferença,
neste tempo hostil, propício ao ódio.
Soneto Para Cantar Uma Ausência
As horas passam, pesam lentamente
vazias de ti, cheias da tua memória.
A tua ausência rompe o fio da minha história,
isola como um fosso este presente.
deixando-me indefeso e inocente
entre a espada afiada da glória
de ter-te amado ontem, e a ilusória
esperança de amar-te eternamente.
Não dirijo a minha vida, e o futuro
apresenta-se inseguro, turvo, incerto.
Atenho-me só a ti, que não te tens.
Inclino-me sobre ti, débil muro
das minhas lamentações: arruinado, aberto,
fendido dique no qual me conténs.
Canção de Inverno e de Verão
Quando é Inverno no Mar do Norte
é verão em Valparaíso.
Os barcos fazem soar as suas sirenes ao entrar no
porto de Bremen com bandeiras de névoa e de
gelo nos seus cabos,
enquanto as balandras batidas pelo sol arrastam pela
superfície do Pacífico Sul belas banhistas.
Isso sucede ao mesmo tempo,
mas jamais no mesmo dia.
Porque quando é dia no Mar do Norte
- brumas e sombras absorvendo restos
de uma suja luz –
é noite em Valparaíso
- rutilantes estrelas lançando afiados dardos
às ondas adormecidas.
Como duvidar de que nos quisemos,
que me perseguia o teu pensamento
e a tua voz me procurava – por trás.
muito perto ia a minha boca.
Quisemo-nos. é certo, e eu não sei quanto:
primaveras, verões, sóis, luas.
Contudo jamais no mesmo dia.
Cidade zero
Uma revolução.
Depois, uma guerra.
Naqueles dois anos - que eram
a quinta parte de toda a minha vida ?
eu havia experimentado sensações distintas.
Imaginei mais tarde
o que é a luta na qualidade de homem.
Mas para mim, criança, a guerra era apenas:
suspensão das aulas na escola,
Isabelita em cuecas na cave,
cemitérios de automóveis, andares
abandonados, fome indescritível,
sangue descoberto
na terra ou nas pedras da calçada,
um terror que durava
o mesmo que o frágil rumor dos vidros
depois da explosão,
e a quase incompreensível
dor dos adultos,
suas lágrimas, seu medo,
sua ira sufocada,
que, por alguma ponta,
entrava na minha alma
para desvanecer-se logo, rapidamente,
perante um dos muitos
prodígios quotidianos: descobrir
uma bala ainda quente,
o incêndio
de um edifício próximo,
os restos de um saque
-papéis e retratos
no meio da rua...
Tudo passou,
é tudo confuso agora, tudo
menos aquilo que apenas entendia
naquele tempo
e que, anos mais tarde,
ressurgiu dentro de mim, então para sempre:
este medo difuso,
esta ira repentina,
estas imprevisíveis
e verdadeiras vontades de chorar.
Preâmbulo a um silêncio
Porque tem consciência da inutilidade de tantas
coisas
às vezes uma pessoa senta-se tranquilamente à sombra de
uma árvore – no verão –
e cala-se.
(Disse tranquilamente?: falso, falso:
uma pessoa senta-se inquieta fazendo estranhos gestos,
calcando as folhas abatidas
pela fúria de um Outono sombrio,
destruindo com os dedos o cartão inocente de uma caixa
de fósforos,
mordendo injustamente as unhas desses dedos,
cuspindo nos charcos invernais,
golpeando com o punho fechado a pele rugosa das
casas que permanecem indiferentes à passagem da
primavera,
uma primavera urbana que faz assomar com timidez as ma-
deixas dos seus cabelos verdes lá no alto,
por trás do zinco escuro dos algerozes,
levemente arreigada à matéria efémera das telhas
prestes a tornar-se pó).
Isso é certo, tão certo
como eu ter um nome de asas celestiais,
arcangélico nome que a nada corresponde:
Ángel,
dizem-me,
e eu levanto-me disciplinado e direito
com as asas mordidas
PEQUENA BIOGRAFIA
Ángel González nasceu em 1925 em Oviedo. Tinha 11 anos quando começou a Guerra Civil Espanhola. Aos 19 anos foi-lhe diagnosticada tuberculose e passou três anos num sanatório nas montanhas de León, onde começou a ler poesia. Posteriormente estudou Direito na Universidade de Oviedo. Em 1955 publicou o seu primeiro livro de poesia, Áspero mundo. Em 1972 recebeu um convite da Universidade do Novo México onde passou a dar aulas de Literatura espanhola. Em 1996 foi eleito como membro da Royal Academy for the Spanish Language. Foi galardoado com vários prémios. Os seus poemas encontram-se traduzidos em diversos idiomas. Em Portugal a «Fenda» editou o livro «Tratado de Urbanismo», em 2001, com tradução de Helder Moura Pereira. A sua poesia é dominada por temas como a história, a política, o amor e a música. Mesmo quando o tom é pessimista, existe subjacente uma leve ironia. Ángel González faleceu em Madrid, no dia 12 de Janeiro de 2008.
Inventário de Lugares Propícios ao Amor
São poucos.
A primavera tem muito prestígio, mas
é melhor o verão.
E também essas frestas que o outono
forma quando interfere com os domingos
em algumas cidades
já de si amarelas como bananas.
O inverno elimina muitos sítios:
gonzos de portas orientadas a norte,
margens de rios,
bancos de jardins.
Os contrafortes exteriores
das velhas igrejas
deixam às vezes vãos
a utilizar, ainda que a neve caia.
Mas desenganemo-nos: as baixas
temperaturas e os ventos húmidos
dificultam tudo.
As leis, além do mais, proíbem
as carícias (à excepção
de determinadas zonas epidérmicas
sem qualquer interesse -
em crianças, cães e outros animais)
e "não tocar, perigo de ignomínia"
pode ler-se em milhares de olhares.
Para onde fugir, então?
Por todo o lado olhos de viés,
córneas torturadas,
implacáveis pupilas,
retinas reticentes,
vigiam, desconfiam, ameaçam.
Resta talvez o recurso de andar sozinho,
de esvaziar a alma de ternura
e enchê-la de fastio e indiferença,
neste tempo hostil, propício ao ódio.
Soneto Para Cantar Uma Ausência
As horas passam, pesam lentamente
vazias de ti, cheias da tua memória.
A tua ausência rompe o fio da minha história,
isola como um fosso este presente.
deixando-me indefeso e inocente
entre a espada afiada da glória
de ter-te amado ontem, e a ilusória
esperança de amar-te eternamente.
Não dirijo a minha vida, e o futuro
apresenta-se inseguro, turvo, incerto.
Atenho-me só a ti, que não te tens.
Inclino-me sobre ti, débil muro
das minhas lamentações: arruinado, aberto,
fendido dique no qual me conténs.
Canção de Inverno e de Verão
Quando é Inverno no Mar do Norte
é verão em Valparaíso.
Os barcos fazem soar as suas sirenes ao entrar no
porto de Bremen com bandeiras de névoa e de
gelo nos seus cabos,
enquanto as balandras batidas pelo sol arrastam pela
superfície do Pacífico Sul belas banhistas.
Isso sucede ao mesmo tempo,
mas jamais no mesmo dia.
Porque quando é dia no Mar do Norte
- brumas e sombras absorvendo restos
de uma suja luz –
é noite em Valparaíso
- rutilantes estrelas lançando afiados dardos
às ondas adormecidas.
Como duvidar de que nos quisemos,
que me perseguia o teu pensamento
e a tua voz me procurava – por trás.
muito perto ia a minha boca.
Quisemo-nos. é certo, e eu não sei quanto:
primaveras, verões, sóis, luas.
Contudo jamais no mesmo dia.
Cidade zero
Uma revolução.
Depois, uma guerra.
Naqueles dois anos - que eram
a quinta parte de toda a minha vida ?
eu havia experimentado sensações distintas.
Imaginei mais tarde
o que é a luta na qualidade de homem.
Mas para mim, criança, a guerra era apenas:
suspensão das aulas na escola,
Isabelita em cuecas na cave,
cemitérios de automóveis, andares
abandonados, fome indescritível,
sangue descoberto
na terra ou nas pedras da calçada,
um terror que durava
o mesmo que o frágil rumor dos vidros
depois da explosão,
e a quase incompreensível
dor dos adultos,
suas lágrimas, seu medo,
sua ira sufocada,
que, por alguma ponta,
entrava na minha alma
para desvanecer-se logo, rapidamente,
perante um dos muitos
prodígios quotidianos: descobrir
uma bala ainda quente,
o incêndio
de um edifício próximo,
os restos de um saque
-papéis e retratos
no meio da rua...
Tudo passou,
é tudo confuso agora, tudo
menos aquilo que apenas entendia
naquele tempo
e que, anos mais tarde,
ressurgiu dentro de mim, então para sempre:
este medo difuso,
esta ira repentina,
estas imprevisíveis
e verdadeiras vontades de chorar.
Preâmbulo a um silêncio
Porque tem consciência da inutilidade de tantas
coisas
às vezes uma pessoa senta-se tranquilamente à sombra de
uma árvore – no verão –
e cala-se.
(Disse tranquilamente?: falso, falso:
uma pessoa senta-se inquieta fazendo estranhos gestos,
calcando as folhas abatidas
pela fúria de um Outono sombrio,
destruindo com os dedos o cartão inocente de uma caixa
de fósforos,
mordendo injustamente as unhas desses dedos,
cuspindo nos charcos invernais,
golpeando com o punho fechado a pele rugosa das
casas que permanecem indiferentes à passagem da
primavera,
uma primavera urbana que faz assomar com timidez as ma-
deixas dos seus cabelos verdes lá no alto,
por trás do zinco escuro dos algerozes,
levemente arreigada à matéria efémera das telhas
prestes a tornar-se pó).
Isso é certo, tão certo
como eu ter um nome de asas celestiais,
arcangélico nome que a nada corresponde:
Ángel,
dizem-me,
e eu levanto-me disciplinado e direito
com as asas mordidas
PEQUENA BIOGRAFIA
Ángel González nasceu em 1925 em Oviedo. Tinha 11 anos quando começou a Guerra Civil Espanhola. Aos 19 anos foi-lhe diagnosticada tuberculose e passou três anos num sanatório nas montanhas de León, onde começou a ler poesia. Posteriormente estudou Direito na Universidade de Oviedo. Em 1955 publicou o seu primeiro livro de poesia, Áspero mundo. Em 1972 recebeu um convite da Universidade do Novo México onde passou a dar aulas de Literatura espanhola. Em 1996 foi eleito como membro da Royal Academy for the Spanish Language. Foi galardoado com vários prémios. Os seus poemas encontram-se traduzidos em diversos idiomas. Em Portugal a «Fenda» editou o livro «Tratado de Urbanismo», em 2001, com tradução de Helder Moura Pereira. A sua poesia é dominada por temas como a história, a política, o amor e a música. Mesmo quando o tom é pessimista, existe subjacente uma leve ironia. Ángel González faleceu em Madrid, no dia 12 de Janeiro de 2008.
Cortesia de Um Buraco na Sombra
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